Page 361 - Revista da Armada
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Setting Sail
                                   Setting Sail








              18. LUGRE-BARCA


              Tal como sucede com as armações lugre-patacho e lugre-escuna que   Numa primeira fase esta armação híbrida terá sido inaugurada pe-
            anteriormente abordámos, também o lugre-barca incorpora no seu apare-  los grandes armadores ingleses e norte-americanos. Depois de poucos
            lho elementos que caracterizam aquelas que estão na origem deste nome   anos antes haverem visto os seus velozes clippers ditarem os preços de
            composto. Recordamos que o lugre-barca é consensualmente considerado   mercado de inúmeros produtos, não admira pois, que, pejorativamen-
            como o mais híbrido e incoerente de todos os aparelhos que alguma vez   te, tenham adoptado o termo jackass-barque para qualificar a armação
            armaram grandes veleiros. Tal deve-se ao simples facto de não se conhe-  resultante das adaptações que eles próprios introduziram, com vista a
            cer qualquer navio de quatro e cinco mastros que tenha sido concebido   salvaguardar o florescente negócio do transporte marítimo de merca-
            de raiz para dispor desta anómala armação. Que o mesmo é dizer, que de   dorias em que muitos se haviam especializado. Pelo carácter pitoresco,
            todo um vasto conjunto de navios que terminaram os seus dias armando   refira-se que esta expressão inglesa é composta pelo termo asno, bur-
            em lugre-barca, todos eles viram, num determinado momento da sua exis-  ro ou imbecil (jackass), logo seguido da denominação barca (barque).
            tência, a respectiva armação original modificada a partir da fórmula com   Literalmente barca-asno, embora com maior rigor possa ser traduzi-
            que foram concebidos, galeras e barcas na sua grande maioria.  do como barca-de-carga, ou burro-de-carga. Este pormenor semânti-
              Na realidade o aparelho designado como lugre-barca, contrariamente   co parece-nos igualmente revelador da conta em que os armadores
            a muitos outros que entretanto comentámos, não possui um conjunto de   tinham os outrora clippers que eles próprios haviam transformado em
            características próprias que facilmente o distinga dos demais. Significa isto   ronceiros lugres-barcas, por meras razões de subsistência.
            que esta armação não passa de uma adaptação que os próprios armadores   Como é regra noutras sortes de aparelho, também o lugre-barca deitava
            introduziram com vista a ultrapassar as dificuldades crescentes com que se   pano latino à proa, podendo igualmente contar com velas de entremas-
            viram confrontados, a partir do último quartel do século XIX. De resto, tão   tro, embora as mais das vezes o número destas últimas apenas depen-
            logo que a velocidade deixou de se constituir como característica primor-  desse de uma certa imaginação do armador, ou, mais frequentemente,
            dial dos veleiros, em grande medida justificada com a abertura do canal de   das carências de equilíbrio vélico identificadas pelo piloto ou pelo pró-
            Suez (1869) e com a maior fidelidade dos navios-vapor, os armadores que   prio comandante.
            detinham grandes frotas de navios de vela tentaram mantê-los rentáveis,
            apesar de muitos saberem que, a prazo, nenhum deles sobreviveria se não   Contrabraço – Cabo que também pode fazer fixo no lais de uma ver-
            optasse por navios equipados com o novo sistema propulsor. Neste contex-  ga redonda, mas tendo como finalidade aguentá-la para vante, dizendo
            to, as grandes barcas e galeras de quatro e cinco mastros viram o respectivo   no sentido oposto ao dos braços. Era antigamente utilizado quando o na-
            aparelho convertido em lugre-barca, por motivos essencialmente económi-  vio se preparava para combate, ou se antevia poder navegar com vento
            cos. Aliás, muitas das grandes barcas com casco de ferro construídas já no   muito forte, servindo, como se depreende, como medida de reforço do
            virar do século, acabaram por conhecer igual desígnio pouco tempo antes   aparelho do navio.
            de serem definitivamente encostadas desmanteladas. Desta forma, operada
            a supressão de parte das vergas onde anteriormente deitavam pano redon-  Mastros – Gurupés (A), traquete (B), grande (C) e mezena (D).
            do, o espaço foi preenchido por velas latinas quadrangulares armadas de
            retranca e carangueja, encimadas pelo prolongamento natural denomina-  Mastaréus – Velacho (E) e gávea (F).
            do gavetope. Assim, uma vez que o preço do frete havia diminuído dras-
            ticamente, minimizavam-se despesas. É que um menor número de vergas   Ronceiro – Expressão habitualmente utilizada para qualificar um ve-
            e panos fazia baixar os gastos com a manutenção do aparelho, a que se   leiro lento ou vagaroso. Como sinónimos podem igualmente ouvir-se os
            somava ainda outro factor de extrema importância: a menor exigência de   termos cangueiro e zorreiro.
            mão-de-obra necessária para içar e caçar o pano agora disponível. Se por
            um lado o pano latino quadrangular permitia desde logo tripulações me-  Tripulação – Nome dado ao conjunto de pessoas que trabalham a bor-
            nos numerosas, donde igualmente menos dispendiosas, a especialização da   do de um navio da marinha mercante ou de recreio, compreendendo o
            marinhagem assumia agora menor relevância, pois bastava dispor de alguns   comandante, a oficialidade e a marinhagem.
            bons profissionais para subir aos mastros com vista a largar e ferrar o pano,
            bem como efectuar a manutenção de todo o aparelho. Por outras palavras,   Velas de proa – Vela de estai (1), bujarrona de dentro (2), bujarrona de
            grande parte dos marinheiros antigos e traquejados, aqueles que auferiam   fora ou contrabujarrona (3) e giba (4).
            melhores soldos, foram substituídos por gente inexperiente e pouco capaz,
            mas cujos conhecimentos e força eram suficientes para manter o navio a   Velas do traquete – Traquete redondo (5), velacho baixo (6), velacho
            navegar, com custos mais baixos.                  alto (7), joanete de proa (8) e sobre-joanete de proa (9).
              Não pretendendo nós de alguma forma definir um aparelho que sem-
            pre se revelou incaracterístico e incoerente, por haver conhecido inúme-  Velas do grande – Gávea (10), joanete do grande (11), sobre-joanete
            ras variantes e nuances, ainda assim pode-se descrever o lugre-barca da   do grande (12) e latino grande (13).
            seguinte forma. Normalmente num navio de quatro ou cinco mastros, que
            outrora havia armado em galera ou barca, operada a transformação citada   Velas da mezena – Mezena (14) e gavetope (15).
            este passava a contar apenas com pano redondo nos dois mastros situados
            mais a vante, embora no segundo o conjunto de velas redondas pudesse   Velas de entremastro – Cozinheira (16), formosa (17), vela de estai do
            assumir carácter parcial, como o nosso desenho ilustra. Nos demais mas-  joanete (18) vela de estai do galope do grande (19).
            tros, por norma envergava pano latino quadrangular e gavetopes, armado
            com retranca e carangueja. No entanto, ao longo de décadas foram sen-
            do experimentadas muitas outras combinações de pano redondo e latino,         António Manuel Gonçalves
            embora a avaliação da respectiva performance, nomeadamente no que                            CTEN
            concerne às velocidades alcançadas, tenha tido resultados apenas com-             am.sailing@hotmail.com
            paráveis ao aspecto andrógino que o próprio navio apresentava.       Desenho: Aida Colaço e António Gonçalves
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