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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (27)



                                      Ilhas de Bruma
                                      Ilhas de Bruma



             urgiu, recentemente, uma pequena po-  subjectiva – que tal esta designação?! -, um  ao ponto de os fazer sentir em casa. Nessas
             lémica relacionada com a reclamação  quartel situado em Bragança ficava, há qua-  alturas apercebem-se de que as encostas ver-
         Sdo estatuto de combatente por parte dos  renta ou cinquenta anos, tão afastado da Ca-  dejantes daquelas ilhas encantadas rompem
         militares portugueses que serviram, no perío-  pital como uma casa de renda económica em  o pardo horizonte em paisagens verdadeira-
         do das guerras do Ultramar, nas antigas pro-  Ponta Delgada ou um bairro militar na cida-  mente deslumbrantes e que, ocasionalmente,
         víncias de Cabo Verde e de São Tomé e Prín-  de da Praia e que, além disso, uma comissão  também o Sol acaba por dar um arzinho da
         cipe. Se não estou em erro, o argumento tinha  no mar é uma comissão no mar em qualquer  sua graça, revelando, numa súbita explosão
         a ver com o facto de, independentemente de  lado. Podemos aceitar o primeiro argumento,  de cor, todo o esplendor da natureza insular.
         não se ter declarado a luta armada nestes ter-  mas o segundo só pode ser mesmo defendido  E, à medida que vão furando o véu de uma
         ritórios ultramarinos, aqueles militares terem  por quem não conhece o mar dos Açores du-  estruturada e codificada sociedade local (que
         sido para ali destacados com o propósito de  rante o Inverno e não faz a mínima ideia do  não é tão hermética como ao princípio se afi-
         defender a soberania do Estado contra even-  que é levar “porrada” da grossa durante dias  gura), vêm a descobrir que os olhares descon-
         tuais agressões. Não se me oferece, natural-  a fio, patrulhando uma extensa área marítima  fiados dos íncolas mais não são do que uma
         mente, contestar a legitimidade de tal pre-  e, muitas vezes, fazendo salvamentos em con-  carapaça que protege corações generosos,
         tensão… Contudo, parece-me inegável que  dições extremas. Que o digam os inúmeros  calejados nas andanças de uma vida madras-
         semelhantes argumentos se poderão aplicar  náufragos arrancados pela Marinha ao furioso  ta e na permanente sensação de terem sob
         num âmbito ainda mais lato. E se, para não  e mortal abraço daquelas águas!  os pés uma terra flutuante e instável. Talvez
         perder tempo em imbróglios de natureza jurí-  E aproveito, aqui, para abrir um rápido pa-  hoje não seja, já, tanto assim, pois a como-
         dica, saltarmos as formalidades das definições  rêntesis, prestando a devida homenagem aos  didades do Progresso e uma notória melho-
         associadas ao conceito de defesa da sobera-  que cumpriram – e cumprem – comissões  ria da oferta de transportes vieram amenizar
         nia nacional, que poderão ser reivindicados  em terra naquele arquipélago, pois a expres-  bastante a austeridade daquela vivência e o
         numa infinidade de situações que geografi-  são “serviço embarcado nos Açores” é, de  isolamento que lhe estava associado. No en-
         camente se dispersam entre Caminha e Vila  certo modo, tão válida para “serviço embar-  tanto, ainda me lembro do tempo em que a
         Real de Santo António, passando por Lisboa  cado” como para “embarcado nos Açores”.  corveta (a “fr’gáta”, como é por ali conheci-
         e arredores, ocorre-me, assim de repente, um  Conheço bem o sentimento de opressão que  da) constituía, praticamente, a única ligação
         exemplo que, por semelhante lógica, deveria  nos toma de assalto quando desembarcamos,  permanente entre as ilhas.
         ser igualmente incluído no universo dos recla-  pela primeira vez, naquelas paragens, aperta-  Fechado o parêntesis (infelizmente não
         mantes: uma comissão de serviço embarca-  dos pelo mar cinzento que nos cerca, esma-  tão rápido como inicialmente se previa e de-
         do nos Açores. Alguém se atreve a contestar  gados pelo plúmbeo céu que nos envolve e  sejava), retomemos o amigável debate com
         a justiça desta comparação? Temos ali tudo:  intimidados pelas expressões fechadas que  os nossos “ultramarinos” de Cabo Verde e
         protecção do solo pátrio, afastamento geográ-  nos rodeiam. Os homens do mar têm, po-  de S. Tomé (porventura, também com um ou
         fico, isolamento, um ambiente estranho - por  rém, uma inegável vantagem: é que ao fim  outro camarada “terrestre” dos Açores que
         vezes hostil – e duríssimas condições de ser-  de uma ou duas semanas de navegação, so-  não tenha ficado convencido com a nossa
         viço. Poderá haver quem não concorde em  bretudo depois de bem chocalhados pelo “bi-  “piscadela de olho” politicamente correcta).
         destacar esta situação em particular, bastan-  cho-oceano” quando está mais mal-disposto,  Ora, um argumento muitas vezes apresenta-
         do, para isso, alegar que, na área da geografia  qualquer porto de abrigo se torna acolhedor  do em desfavor do pessoal embarcado é o
                                                                               facto de as suas comissões não durarem dois
                                                                               anos (também era melhor, não?!) e sim três
                                                                               ou quatro meses. Então e os que acumulam
                                                                               quatro, cinco ou seis (há quem tenha chega-
                                                                               do às dez!), algumas delas praticamente se-
                                                                               guidas, em cima do “lombo”? Estou à vonta-
                                                                               de para o dizer, pois só me posso gabar de ter
                                                                               duas no meu activo ou, para ser mais rigoro-
                                                                               so, uma e duas meias. Eu explico: uma das
                                                                               meias não foi mais do que a minha viagem
                                                                               de instrução do Terceiro Ano da Escola Na-
                                                                               val, quando, por motivo de avaria do nosso
                                                                               velho reabastecedor “S. Gabriel” (o meu cur-
                                                                               so sempre teve cá um azar nestas coisas!), um
                                                                               prometedor périplo pelo Norte da Europa foi
                                                                               trocado por um embarque nas corvetas que
                                                                               cumpriam comissão nos Açores. O curso foi,
                                                                               então, dividido em duas bordadas, cada uma
                                                                               delas correspondente a metade da comissão,
                                                                               e cada bordada foi, por sua vez, repartida pe-
                                                                               las duas corvetas. Posso dizer que acabou por
                                                                               ser uma “viagem” muito mais interessante e
                                                                               proveitosa do que à primeira vista parecia,
                                                                               com abundante “material” para relatar nes-
                                                                               tas páginas (isso hão-de ser outras histórias).

         30  MAIO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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