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GÉNESE DA CARTOGRAFIA
                                 NÁUTICA PORTUGUESA

Ao CALM Luís Roque Martins,                      ca, desde a Ilha de Ouessant ao Golfo da Guiné, marear», se referiu a diversas lacunas que as cartas
na ocasião em que termina o cargo                bem como a carta de Jorge de Aguiar (1492) e náuticas portuguesas apresentavam.
de Director da Revista da Armada                 o fragmento anónimo do ANTT (c. 1500-1510). Aos irmãos Reinel seguiu-se, até ao último quar-
e uma longa e brilhante carreira na Marinha. Apartir da viagem de Vasco da Gama, as cartas tel do séc. XVI, uma série de cartógrafos, como
                                                 náuticas portuguesas abandonaram, progressiva-     Francisco Rodrigues, João Freire, Lázaro Luís,
Acartografia náutica ter-se-á desenvolvido       mente, as concepções ptolomaicas, e passaram       Lopo Homem, Fernão Vaz Dourado, Gaspar Vie-
       em Portugal graças a dois preciosos au-   a incluir belas iluminuras. Porém, as indicações   gas, Domingos Teixeira, Sebastião Lopes, Diogo
       xílios: mais indirecto um, o do almiran-
                                                                                                     Sanches, João e Pedro Teixeira Albernaz, Barto-
                                                                                                     lomeu Lasso e João Baptista Lavanha, represen-
te Manuel Pessanha, genovês contratado em                                                                 tantes de uma nova fase da cartografia náutica
1317 por D. Dinis, através do contributo que                                                              portuguesa, caracterizada por um maior rigor
deu às viagens de descobrimento, ao trazer téc-                                                           e perfeição de execução. Lavanha, ao qual se
nicos seus conterrâneos para Portugal; de for-                                                            devem um excelente mapa de Aragão, um Tra-
ma mais directa outro, o de Jácome de Maior-                                                              tado de Arte de Navegar, um Regimento Náu-
ca, também alcunhado «o judeu das agulhas»,                                                               tico e a primeira tábua de amplitudes do Sol e
filho do presumível autor do Atlas Catalão de                                                             os troncos particulares de léguas é, porventura,
1375. Esteve em Portugal entre 1420 e 1427,                                                               o último grande expoente do período áureo da
e foi chamado pelo Infante D. Henrique, para                                                              cartografia náutica portuguesa.
instruir os navegadores portugueses desig-                                                                Com o declínio do poder marítimo português,
nados para a exploração da costa de África.                                                               assiste-se, a partir do último quartel do séc. XVI,
Sobre ele, refere Duarte Pacheco Pereira que                                                              a um definhamento da produção de cartas
era «mestre em cartas de marear, que ensinou                                                              náuticas, e a um comparativo atraso técnico
a fazer àqueles com quem, os que em nosso                                                                 relativamente a outros países, consubstanciado,
tempo vivem, aprenderam».                                                                                 por exemplo, na tardia adopção da projecção
D. Pedro, em carta de privilégio, de 22 de Ou-                                                            de Mercator, muito embora a ideia das latitudes
tubro de 1443, refere que o Infante D. Henrique                                                           crescidas representasse apenas um pequeno
«tinha mandado elaborar uma carta náutica»                                                                passo mais em relação ao que continha já o Tra-
de terras descobertas além do Cabo Bojador.      Carta Náutica Portuguesa de «circa» 1471, a mais antiga  tado da Sphera, de Pedro Nunes, que antecedeu
É esta a primeira referência temporal conhecida  carta portuguesa conhecida.                              aquela em 32 anos. A isto não terá sido alheia,

sobre a produção de cartografia náutica de carácter eminentemente prático e náutico evidentemente, a influência asfixiante da Inquisi-
portuguesa. Na mesma linha, Zurara afirma, na contidas nas suas extensas legendas, contras- ção, embora seja verdade que aquela invenção
Crónica de Guiné, que cabe ao Infante D. Hen- tam com as muitas fantasias da tradição anterior. era menos importante para os portugueses que,
rique o louvor de trazer ao conhecimento dos Como inovação de vulto, a carta de Pedro Rei- por navegarem, sobretudo, nas regiões tropicais,
presentes e dos vindouros, o conhecimento das nel, de c. 1504, contém uma escala especial de podiam usar, sem grande desvantagem, as cartas
correntes e profundidades no Cabo do Bojador, latitudes, inclinada, na região da Terra Nova.        quadradas, o que não acontecia para outros po-
da possibilidade de navegar nessa região,                                                                 vos que praticavam latitudes mais altas.
e de qual o verdadeiro traçado da linha                                                                   Como quer que seja, até ao século
da Costa. Refere, ainda, que no tempo do                                                                  XVIII, a cartografia portuguesa esteve
Infante D. Henrique, foram acrescentadas                                                                  sempre mais virada para o mar, do que
450 léguas ao mapa existente.                                                                             para o espaço terrestre. Por isso, não
Nestas circunstâncias, e segundo Ar-                                                                      andaria longe da verdade Montesquieu,
mando Cortesão, pode-se considerar o                                                                      ao dizer que os portugueses tinham des-
período de 1420 a 1460 como o prelú-                                                                      coberto o mundo, mas desconheciam a
dio da cartografia náutica portuguesa.                                                                    terra em que nasceram.
Contudo, não subsistem hoje exemplares                                                                    Sendo certo que Fernando Álvares
de cartas náuticas portuguesas contem-                                                                    Seco, em 1561, desenhou aquele que foi
porâneas do Infante D. Henrique. Mas é                                                                    o primeiro mapa impresso de Portugal, e
de crer que, muitas cartas estrangeiras do                                                                Pedro Teixeira executou outro em 1662,
séc. XV, como as de Fra Mauro (1459),                                                                     restavam ainda sérias lacunas no conhe-
Grazioso Benincasa (1463 a 1482) e An-                                                                    cimento pormenorizado da cartografia
drea Benincasa (1476), entre outras, se     Carta de Pedro Reinel, com latitudes inclinadas, 1504.        terrestre do nosso país.

basearam em exemplares portugueses entretan- A introdução da escala de longitudes por Jorge Manuel de Azevedo Fortes, nomeado em
to desaparecidos. O célebre planisfério, dito de Reinel em 1519, o emprego da flor-de-lis para in- 1719 engenheiro-mor do reino, curiosamente
Cantino, terminado em Setembro de 1502, que dicar o Norte nas rosas-dos-ventos, e o desenho o primeiro a professar, por escrito e entre nós, o
constitui o mais precioso espécime da cartogra- de planos hidrográficos com vistas da costa reba- cartesianismo, um dos fundadores da Academia
fia náutica antiga portuguesa, foi copiado por (ou tidasnoplanohorizontal,daautoriadeD.Joãode Real da História Portuguesa, reconheceria que
para) um espião italiano, a partir de um original Castro em 1538, constituem outras tantas contri- não havia, ainda, em Portugal, nenhuma carta
português que se perdeu.                         buições portuguesas para o aperfeiçoamento da particular «de nenhum dos seus bispados». Por
Como testemunhos da cartografia náutica cartografia náutica. Nesta evolução, desempe- isso, em 1722 imprimiu um «Tratado do modo
portuguesa do século XV, recordam-se, ainda, nhou um importante papel Pedro Nunes que, em o mais fácil e o mais exacto de fazer as cartas
a célebre carta náutica anónima de «circa» de dois tratados de 1537, intitulados «Sobre certas geográficas assim da terra como do mar, e tirar
1471, abrangendo as costas da Europa e da Áfri- dúvidas da navegação» e «Em defesa da carta de as plantas das praças, cidades e edifícios com

6 DEZEMBRO 2013 • REVISTA DA ARMADA
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