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REVISTA DA ARMADA | 485
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 32
A MELANCOLIA
E A MUDANÇA
Nunca digas que velhos são os trapos, pois só as pessoas são
velhas: porquê perder essa palavra verdadeira, que só não será
nossa se morrermos novos?
In Ars Vivendi, Ars Moriendi, Francisco Niebro, Edições Âncora,
Setembro de 2012
Otristes e melancólicos. Muitos admitem que em Portugal se lhes foi cortada. Exigirem o “genérico mais barato, Doutor”, pois
- viver todos juntos, no pequeno apartamento dos avós. O “lar” da
trações culturais, que nos caracterizam. Desde logo o Fado – a esposa com Alzheimer (… a doença do “Alemão”, como muitos
nossa canção nacional – mas a melancolia nacional também em mais baratos” e enchem a barriga… Tornou-se comum em muitos
Eça de Queirós (que muito aprecio), Fernando Pessoa e outros lares de idosos…
ainda, mais atuais, como Lobo Antunes… Todos retratam a reali-
dade nacional do seu tempo. Os seus relatos não se referem (ex- com outras como por exemplo a restrição a cuidados de saúde
em meses apenas uma, sem qualquer adaptação estrutural digna
ou vive… São, quanto a mim, escritos históricos bem mais rele- temor pelo próprio futuro, pois os médicos são também homens
vivos para sempre…
Ouve-se na Marinha dizer muitas vezes que “não vale a pena”
Ora, considero que sim, é verdade que os portugueses são -
melancólicos, mas há boas razões para tal. De entre estas a
principal é que ao longo da história fomos sempre um povo cias”. A estes eu lembro que os hospitais privados com que o
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povo comum, agravadas (mesmo em tempos de abundância) lucro fácil. Por outro lado, “as convenções” partem sempre de
pelas vigarices de outros. Outro traço histórico comum é que, -
- uma fundação pouco segura para o apoio aos militares reforma-
dos e às suas famílias…
preocupados com os seus interesses pessoais do que com o
bem comum… Na minha existência atual de “Coronel da Marinha”, no Hos-
pital das Forças Armadas, poucos me valorizam pelo que sou (…
As materializações deste sofrimento do povo são reais e tam-
bém bem descritas em vários romances. O facto de que gran- -
no tempo dos Descobrimentos… A emigração que desde tempos tos, tristezas e alegrias. Muito poucos, tomo-o por certo, leem
agora, de forma quase calada, silenciosa, porque inconvenien- a Revista da Armada, da qual sou apenas lembrado pelo ocasio-
te… Aliás, diz-se na Marinha que em qualquer parte do mundo entre o azul-claro perene em sua casa… o azul-marinho vive num
há sempre um português, ou um luso descendente, o que eu pró-
prio já comprovei, em lugares como Porto Rico, Austrália e outros -
lugares distantes que percorri embarcado...muito para além do go “um estrangeiro em terra estranha…”, que caracteriza a mi-
Paris conhecido e reconhecido, como uma cidade “portuguesa” nha atuação e a dos, poucos, marinheiros médicos que comigo se
importante… cruzam em trabalho. Todos ansiamos por uma mudança. Muitos
Portugal, como nação, passou assim por períodos de maior
ou menor abundância, ao longo de séculos, aparentemente sem
mudar a matriz social mais profunda: a concentração da riqueza
nalguns, poucos, perpetuada ao longo de séculos de intervenção
esta realidade entra-me pela “porta” dentro todos os dias… Hoje
é comum, durante a consulta, ouvir velhos militares, de todos os
postos (e agora de todos os ramos…), chorarem pela pensão que
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