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REVISTA DA ARMADA | 489 5
Stratεgia
A SOMÁLIA E A UTILIDADE DAS MARINHAS
Apartir do início da década passada, a pirataria marítima au- meçando inevitavelmente por uma intervenção militar em lar-
mentou significativamente no Corno de África, por ação de ga escala, mas incluindo a reconciliação política, o fomento da
piratas somalis. As causas para isso são diversas, sendo de referir governança, a reconstrução económica e o fortalecimento das
o facto do país se encontrar em guerra civil desde 1991, situação instituições e da sociedade civil. Porém, nessa altura, os países
agravada por uma seca profunda (que dura há mais de 12 anos) capazes de o fazer (com os EUA à cabeça) já estavam envolvidos
e pela total incapacidade do Estado para controlar o território e em duas intervenções militares em larga escala (no Afeganistão
a população que, regra geral, vive abaixo do limiar de pobreza. e no Iraque) – o que limitava a sua capacidade de intervir. Além
Aliás, segundo um estudo recente do Banco Mundial, vários pira- disso, a potência indispensável (os EUA) ainda tinha bem presen-
tas entrevistados referiram a pobreza e a falta de oportunidades te na memória o fracasso da intervenção militar na Somália em
de emprego como os principais motivos para se terem dedicado meados da década de ‘90 – que condicionava a sua vontade de
à pirataria. atuar. Acresce ainda que a partir do início de 2009 ocorreu uma
Tudo isto fez com que a atividade dos piratas somalis fosse mudança na postura estratégica dos EUA que, com a chegada do
crescendo, até ultrapassar a centena de atos de pirataria em Presidente Obama à Casa Branca, foram reduzindo os seus em-
2008 – entendendo-se por atos de pirataria as abordagens ou penhamentos no exterior, cortando com a política intervencio-
as tentativas de abordagem de um navio, efetuadas em alto mar, nista pós 11 de setembro de 2001.
com o objetivo de cometer roubo ou outro crime, para fins pri- Ou seja, não havia capacidade nem vontade para tentar atacar
vados, e envolvendo a utilização efetiva de força ou a intenção o problema da Somália pela raiz. Assim, a única maneira de ate-
de o fazer. nuar e controlar a situação foi o envio de navios de guerra, cuja
Além disso, vários casos altamente mediatizados, ocorridos atuação tinha suporte legal no direito internacional marítimo (es-
nesse ano (2008), fizeram disparar a atenção geral para o fenó- sencialmente, na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
meno. As potenciais consequências destes ataques causaram do Mar), bem como em várias Resoluções do Conselho de Se-
preocupação imediata. Primeiro, eles ameaçavam a entrega de gurança das Nações Unidas. Essas resoluções permitiam (e per-
ajuda internacional (nomeadamente do Programa Alimentar mitem), com a concordância do governo federal de transição da
Mundial da ONU) ao povo da Somália, que vivia uma verdadei- Somália, a entrada no mar territorial somali, com o objetivo de aí
ra tragédia humanitária. Segundo, eles constituíam uma ameaça reprimir a pirataria, entendida em latu sensu, pois formalmente
ao regular fluxo de tráfego marítimo na principal rota comercial estes ilícitos designam-se como assaltos à mão armada contra
entre a Ásia e a Europa, por onde passam cerca de 70 navios por navios quando cometidos em águas territoriais.
dia. Cabe aqui referir que a alternativa ao trânsito pelo Golfo de Dessa forma, em resposta a um pedido da ONU, a NATO desen-
Áden e pelo Canal do Suez consiste na rota do Cabo, correspon- cadeou, entre outubro e dezembro de 2008, a operação ALLIED
dente a fretes significativamente mais longos e mais demorados, PROVIDER e, a partir de março de 2009, a ALLIED PROTECTOR.
com acréscimo dos preços dos bens transportados. Terceiro, a Em agosto de 2009, essa operação deu lugar à OCEAN SHIELD
pirataria poderia acarretar riscos elevadíssimos, em termos de (ainda em curso e com duração prevista até final de 2016).
eventuais catástrofes ambientais, já para não falar em possíveis Também a UE decidiu intervir na região, encetando a primeira
associações ao terrorismo. missão naval ao abrigo da Política Europeia de Segurança e De-
A solução para este problema teria que passar por tentar as- fesa: a operação ATALANTA. Foi lançada formalmente em dezem-
segurar condições de governabilidade e de alguma normalidade bro de 2008 e o seu termo tem sido sucessivamente estendido,
política e institucional na Somália, que permitissem restaurar a encontrando-se atualmente previsto para final de 2016. As várias
autoridade do Estado e estabelecer uma economia viável. Isso forças navais presentes na área têm perfis de atuação não total-
requeria uma ação de state building abrangente, que integrasse mente coincidentes, embora todas concorram para a consecução
as várias dimensões essenciais à edificação de uma nação, co- dos mesmos objetivos estratégicos.
Assim, a missão prioritária da operação ATA-
LANTA consiste em assegurar a chegada da aju-
Atos de pirataria atribuídos a piratas Somalis da alimentar à Somália e garantir o apoio logísti-
(Fonte: InternaƟonal MariƟme Bureau) co às forças da African Union Mission in Somalia
(AMISOM).
250 Além disso, a força naval europeia contribui para o
combate à pirataria e a escolta/defesa de navios mais
200 vulneráveis – que constituem as principais tarefas da
força da NATO, bem como de uma força-tarefa lidera-
150 da pelos EUA e de outros navios de guerra presentes
na área (provenientes de Arábia Saudita, China, Co-
100 reia do Sul, Índia, Irão, Japão e Rússia).
Cumulativamente, essas forças e unidades navais
50 têm desempenhado um papel essencial na salva-
guarda da vida humana no mar, acudindo a inúme-
0 ros pedidos de busca e salvamento, evacuação mé-
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
dica e, mesmo, salvação marítima.
4 OUTUBRO 2014