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REVISTA DA ARMADA | 492                                       39

NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA

A RUA DO ARSENAL...

Deixei de usar citações de outros. Passei a usar estas frases introdutórias para situar os leitores no meu estado de alma (atitude ousada
para este escrito sem jeito). O texto de hoje surgiu num ápice e terá (assumo eu na minha presunção) tanto de histórico como de pes-
soal… são como nos casos mais comuns um cruzamento entre a nossa história pessoal, a história do nosso país e as nossas emoções…

ARua do Arsenal é um paradigma de Lisboa. Uma rua rela-           enterrar na lama os fortes membros dos negros, já que havia
     tivamente estreita, antiga, ribeirinha, plena de sensações.  chovido e a lama era espessa…
Liga o Largo do Corpo Santo ao Terreiro do Paço. Só estas de-
signações já impregnam a nossa alma de história. A rua atual        Cheirava a especiarias, pimenta, canela, fortemente apregoa-
ainda representa parte do nosso ser. Lojas portuguesas resis-     da por vendedores insistentes. O cheiro misturava-se com o chei-
tem à invasão dos hipermercados. O cheiro, não filtrado, do       ro dos dejetos das bestas, que, infelizes, percorriam a rua entre-
bacalhau, é disso exemplo pungente. Estaminés de um brique-       gues à sua sorte, inclementemente picadas por moços de cochei-
-a-braque que interessa a turistas e a portugueses, remanes-      ra de gibões mal cheirosos e sandálias velhas.
centes do tempo em que os rádios de transístor eram novos.
Uma casa de colecionadores, com uma jovem de aspeto in-              Senhores da Flandres, de um louro feminino, regateavam
diano na montra, enquadrada por caixas de selos e exposito-       preços num português macarrónico, procurando o melhor ne-
res de moedas antigas, também exóticas. Tascas e bares cujo       gócio – aquele que lhes permitiria maximizar o lucro nas ter-
cheiro a pataniscas invade a rua e abre o apetite completam o     ras do norte. Um criado de um judeu, exibia na frente da casa
ambiente e preenchem o ar de sensações múltiplas, perenes         de seu amo, um conjunto de moedas, que ajudariam – por ju-
de encanto. Por fim, uma loja de conservas apresenta-se num       ros negociados – alguém a pagar as suas dívidas, ou a aumen-
gaveto. Dela saem japonesas em grupos saltitantes, com lati-      tá-las… Nisto, ouve-se um grito e passa um rapaz a correr pela
nhas reluzentes, quase grandes demais para as suas peque-         vida. – Aqui d´el-Rei, agarra que é ladrão… – vocifera um mer-
nas mãos, seguramente recordações de uma rua a saborear           cador anafado, enquanto o ladrão fugia mais rápido que os ho-
no Japão.                                                         mens d´armas que o perseguiam, sem grande convicção.

  Do outro lado da rua, o edifício mais austero do Ministério da    Uma dezena de homens a cavalo, garbosos, de espada à cin-
Marinha. Um casal de marinheiros jovens defende com a sua         ta, passam numa rapidez desusada. Vão escoltar a carga recém-
simpatia a porta que permite o acesso à Academia de Marinha.      -chegada de uma das Naus da Índia, depositada ali para os lados
Hordas de gente apressada passa nos elétricos e autocarros,       da Praça das Cebolas. Por momentos todos lhes dão passagem.
que se dirigem em caravana para o Cais do Sodré. No passeio,      Segundos depois o formigueiro retorna, pregões, cheiros, uma
turistas de morfologia nórdica tiram fotos com máquinas foto-     negra de bilha às costas vende água a quem dela sente falta no
gráficas em tripés, tentando encapsular o contraste entre o as-   seu crioulo agitado. Um grupo de monges, descalços, passa na
peto decrépito de alguns prédios (a ameaçar rutura) e o branco    sua penitência rezando num latim ininteligível para quem ouve,
mármore do edifício da Câmara Municipal de Lisboa.                mas certamente próximo do divino, naquele dia em Lisboa…

  Agora, num esforço de imaginação, feche o paciente leitor         Abra agora o leitor os olhos. Ouça as buzinas. Os barulhos
os seus olhos. Recue na sua mente cinco séculos. Imagine a        da rua, o sentir do dia. Talvez então perceba melhor a Rua do
Rua do Arsenal de então. Imagine uma rua ribeirinha, bem          Arsenal? É esse novo sentir que representa o peso profundo
perto do Tejo, que seria logo ali. Um corrupio de embarca-        do que fomos e, para o mal ou para o bem, herdámos… É este
ções bordejava a margem, de modo que se sentiam as ordens         sentir que nos emociona quando no Oriente visitamos uma
do mestre, ocupando as mãos dos seus homens nas lides da          fortificação portuguesa. É esse sentir que parece esquecido
mareação. Um porco, vivo, caiu por acidente, das costas de        por muitos, neste viver pequenino em que caímos, por falta
um estivador que transportava animais vindos ali dos lados        de um engenho em que erámos mestres, guardado no sentir
das quintas de Almada. Os seus guinchos chamaram a aten-          da Lisboa de antanho…
ção dos almocreves, que vendiam os seus produtos na rua,
aos transeuntes.                                                    Nota final: perdoem-me aqueles que na Marinha realmente
                                                                  sabem história de Portugal, capazes por certo de produzir um
  Uma senhora nobre, filha de um capitão ao Serviço de Sua        muito melhor texto. Muitos são, historicamente, meus verda-
Majestade, na Índia, cruzava a rua na segurança de uma litei-     deiros amigos, nos bons e nos maus momentos…
ra segura nos ombros de quatro fortes negros de África. Com
ela, na liteira, seguia o mais recente presente do pai: uma aia,                                                                                           Doc
jovem, quase criança, indiana, em sari cor de laranja… O peso
da liteira em madeira nobre, mais que o peso das jovens, fazia

30 JANEIRO 2015
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