Page 31 - Revista da Armada
P. 31
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA REVISTA DA ARMADA | 494
41
VELHO AMIGO...
"as palavras para lá do meu alcance… só se escrevem no silêncio"
Citação de autor anónimo
Encontrei-o na Baixa. É o que dá estar no Terreiro do Paço. Há Na noite em que o encontrei, voltei a ouvir a música simples
mais de 20 anos que o não via. Mantinha a barba, que estava (guardada em cassetes esquecidas), para as pequenas horas da noi-
agora grisalha, o corpo magro, curvado; nestas palavras vou de- te. Emocionei-me com as memórias que os sons transportam. Pro-
signá-lo como o Poeta. Conheceu-me logo e quase gritou, com curei, outra vez, abrigo num poema. Ocorreu-me então que a emo-
uma voz rouca modelada por anos de tabaco sem filtro: ção é maior, muito maior, que a morte… E está na nossa mão…
− És o Luís, não és? Escrevi esta história, que não ia enviar para a Revista da Armada,
− Sou, sou eu − respondi de imediato, a memória deste homem por ser “muito lamechas”… Foi um acidente de percurso que me
estava (estará) sempre nítida na minha mente. levou a publicá-la. Na verdade, foram os silêncios da Almirante Reis
− Então és Doutor? – continuou. e os amigos como o Poeta que me permitiram procurar “as vozes e
− Sou − respondi de novo. Lembrei-me que sempre foi de as palavras para lá do meu alcance…”. Estas palavras tornaram-me
frases curtas. naquilo que sou (e não me refiro aos títulos profissionais, ou mesmo
A cara iluminou-se, como se tivesse recebido uma prenda, na académicos). Foi então que me habituei a ouvir… Foi então que per-
Rua Augusta, fora do Natal… cebi que não há uma quantificação clara para o amor, para o sofri-
Conheci o Poeta quando era aluno de Medicina. Morava então mento, para a solidão do ser humano… se a houver, está na alma de
na Avenida Defensores de Chaves, numa Residência dos Serviços alguns espíritos. Foi então, por fim, que aceitei que as coisas impor-
Sociais (chamada Egas Moniz), entretanto transformada em Ho- tantes da vida só se exprimem em sentimentos… Daí até estas pala-
tel. Estudava de noite, dormia pouco. Percorria o jardim Constan- vras e outras fica apenas um suspiro… e mais este escrito…
tino, a Rua da Estefânia, enfim, andava para baixo e para cima, na
Almirante Reis. Que bom ter encontrado o Poeta.
Foi lá que conheci o Poeta, que nessa altura habitava na fren- Até breve, velho amigo…
te da Igreja de Arroios. Pedia cigarros, beatas a quem passava…
À saída da missa pedia com um chapéu velho aos devotos, que doc
saíam apressados, poucos paravam… Em noites quentes, encon-
trava-se na relva da Alameda, ou mesmo no Jardim da Praça de
Londres. Tinha sido escriturário, trabalho fino, num notário. As
ideias “baralharam-se” na cabeça dele em certo ponto da vida.
Via e sentia a vida de modo diferente. A mulher, inicialmente, e
depois toda a família, abandonou-o.
Recitava poemas de um livro amarelado e gasto que carregava.
Dizia-o com alma, acentuada pelo silêncio na noite, para quem
passava. Achei sempre que eram belos. Ficámos grandes amigos.
Durante os anos seguintes, encontrei-o a ele e aos amigos que
entretanto fui conhecendo, vizinhos da mesma “habitação”.
Cheguei mesmo a levar muitos à Urgência de São José, ali
tão perto. Onde o cheiro e sarna do Poeta me faziam ouvir in-
vetivas mais ou menos desagradáveis dos médicos de Serviço
– uns anos mais tarde fiquei mesmo conhecido pelo “médico
dos malcheirosos” – nome que guardo na alma com orgulho e
nos muitos escritos, que então produzia. Uns alegres, outros
tristes, todos apreciados pelo Poeta e pelos entes eternos, fan-
tasmas desdentados, que pululavam à volta dele e no silêncio
da minha alma…
Parecia, agora, tantos anos passados, mais alinhado. Morava
num abrigo de uma instituição que lhe tinha “dado a mão”. Tinha
um trabalho. Pareceu-me feliz…
− Perguntei-lhe pela “Sebenta Amarela dos Poemas”. Abriu os
olhos, que ficaram de repente estupefactos pela pergunta… Não
respondeu, sorriu… Eu também não esperava resposta…
Seguimos, então, cada um para seu lado, sem pressa… Imersos
na vida.
MARÇO 2015 31