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REVISTA DA ARMADA | 495                                        42

NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA						

O QUE O MAR ME DEU...

“… O mar dá muito, e crede que não
se pode o mundo sem ele governar,
e pode muito e tem tal coração
que nada pode dominá-lo;	
por isso também é temido, que não sei
quem o não tema, e contar-vos-ei
ainda mais e julgai-me então…"

Pai Gomez Charinho, Poeta, Pontevedra, 1225-1295

  Recebi a mensagem. Fiquei quieto na alma… Ali, em silêncio!      nhos feitos poder dar conta, é um dos mistérios da (minha) vida…
  Recordei o poema acima, que fala do mar, tudo o que ele é        Digamos que, sem eu saber, tudo me preparou para aquele pre-
e tudo o que nos pode dar. Lembrei-me, então, de tudo o que        ciso momento, em que se define o sentir de uma pessoa, de um
o mar já me deu, tudo a propósito daquela mensagem. Deci-          Médico (Naval)… o sentir de uma vida…
di “contar-vos ainda mais”, para que possam ajuizar de mim e
do mar…                                                              Vamos, por certo, falar da escola contruída, dos botes, do
  A mensagem era um “toque a reunir”. Um convite para uma          calor, da humidade e, particularmente, vamos sentir a alegria
reunião/almoço… a propósito da missão da Vasco da Gama,            de voltarmos a estar juntos… vamos falar, se quiser o leitor
em Timor. Não houve, na minha alma (e na de muitos), missão        paciente, do muito que o “mar nos deu”. Irá estar lá, talvez,
como esta. O mar de Timor trouxe-me tanto, que talvez nunca        um antigo Imediato que partilha os meus nomes cristãos, um
seja possível cantá-lo de forma a fazer justiça, de forma a esta-  outro Oficial que me ofereceu um livro sobre aves (… um dos
belecer retribuição…                                               meus interesses escondidos), talvez até esteja o sargento co-
  Em primeiro lugar, permitiu-me um conhecimento profundo          municativo que me acordou, porque um tio meu insistiu em
de um povo amigo e o reconhecimento de formas de sofrimento,       lembrar-se que eu fazia anos… Do mais pequeno ao maior, es-
que ainda hoje lembro no mais íntimo do ser e explico aos alunos   tarão lá os meus irmãos, num sentir que só a idade pode fazer
que agora tenho. Foi lá que descobri que, com “ganas de curar”,    compreender totalmente…
se podem fazer milagres. Foi lá que bem percebi a magia de estar
vivo… a diferença entre o ser e o sentir…                            Aquele mar, contar-vos-ei por fim, deu-me alma… permitiu-
  Fiquei com a alma cheia e, ocasionalmente, ainda verte. É        -me aceitar segredos insondáveis, perseguir verdades longín-
assim quando falo de determinada missa, em Manatuto, onde          quas, espantar quem não conhece os segredos do nevoeiro.
os devotos acorriam descalços sobre terreno áspero à comu-         Este mar sou eu, somos todos os que já fizeram parte de uma
nhão… Terá sido da luz da manhã, ou do sentir da gente, mas        qualquer guarnição, os que enjoaram, perderam a esperan-
muitos marinheiros se emocionaram então… e eu ainda me             ça no azul do céu longínquo no meio da tempestade, viram
emociono, na recordação…                                           nascer na distância os filhos, sofreram… O mar temeram, mas
  Mas o mar deu-me bastante mais, deu-me um Van Gogh da            também amaram…
panificação, um Cardeal Poupas na cozinha, e mais de uma cen-
tena de homens bons, que se excederam a si próprios, armados         O mar seguramente é poderoso e dá-nos muito…. Não se pode
de um porfiar por fazer bem, que eu desconhecia. A um coman-       governar mundo sem ele…
dante gentil, que já fez a viagem para a outra costa, já prestei
bastas vezes homenagem… Será certamente lembrado na nossa                                                                                                   Doc
reunião e, desde a sua partida, até este momento, estou certo
que tem tido ventos de feição… pois as pessoas, todas elas, só
são esquecidas quando partem sem amigos que delas deem boa
conta, deste lado do mar oceano.
  Penso (e já tenho afirmado aos amigos chegados) como tama-
nha é a ironia da vida. Que uma pessoa, assim estranha como eu,
tivesse feito aquela viagem, para agora, anos passados, de tama-

30 ABRIL 2015
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