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REVISTA DA ARMADA | 507
ESTÓRIAS 22
"ORA DI BAI"
hegados da Índia no “Bartolomeu Dias”, em princípios
Cde 1955, a natural mudança da guarnição e de Co-
mando. O Comandante Gabriel Prior é rendido pelo Co-
mandante Sarmento Rodrigues, a que se junta o CFR Pinto
Bastos Carreira como Imediato. Começam os preparativos
para a viagem presidencial do General Craveiro Lopes, a
Cabo Verde, Guiné e Madeira.
Sendo artífice torpedeiro electricista, eu “acumulava”,
em part time, a função de fotógrafo. Talvez por isso, fui
chamado ao Senhor Comandante, que me disse: “Ah, é
você! Já falei com uma casa de fotografia e eles dar-lhe-
-ão instruções. Veja lá o material que é preciso, máquina,
rolos, essas coisas” e entregou-me um cartão, rematando:
“É só!” Lá me apresentei na casa de fotografia na Rua da
Prata, onde fui instruído e aprovado nessa mesma tarde.
Maio de 1955. Gare Marítima de Alcântara. Máquina Foto do autor
fotográfica em posição, imortalizando “tudo o que mexia”.
Salvo o devido respeito, assim foi com o Presidente da
República, entrando a bordo. Ouvia-se a charanga do navio, magis- de da cidade de Mindelo, conforme testemunha o Monte Cara.
tralmente dirigida pelo mestre Vargas (1SAR B) tocando o Hino Na- Muitas embarcações a remos e a motor, muitas bandeirinhas,
cional, ao mesmo tempo que soavam as salvas da ordenança dispa- muitos gritos e acenos e a retribuição de bordo, o que se repetiu
radas pelas Hotckiss, sob as ordens do tenente Raposo, Chefe de Ar- em todas as outras ilhas visitadas: Santo Antão, onde, no “porto
tilharia. Este, empunhando a espada, gritava: “Peça de BB… fogo!… da Janela” em 1946, encalhou e lá se perdeu o Navio Hidrográfico
Peça de EB... fogo” e um artilheiro a contar em voz alta, não fosse “D. João de Castro”; a ilha do Fogo e o seu pequeno porto de
passar das 21… enquanto entrava também a bordo Dª Berta Cravei- águas profundas, bem escondido e, como tal, bom refúgio de
ro Lopes e demais comitiva. Estas honras repetir-se-iam ao longo de piratas, que o foi para Francis Drake e outros; S. Nicolau e a su-
toda a viagem sempre que o Presidente da República desembarcava bida da Ribeira Prata; S. Tiago, a maior de todas as ilhas, com a
ou regressava a bordo. Ouvido mil vezes, ora nos ensaios, ora nas cidade da Praia, capital do arquipélago; Sal, com o seu aero-
cerimónias, o respeitadíssimo Hino Nacional já provocava protestos porto internacional; Boa Vista, com as suas lindas praias (onde
ao Mestre Vargas, do género: “se não conhecia outra música” e “que fica o paraíso, não há que errar); e a que, propositadamen-
mal é que o ‘homem’ lhe fez?”. te, deixei para o fim: a Brava, a mais doce, pequenina, a mais
Toca à faina e lá vamos nós rumo a Cabo Verde escoltados pelo querida, a mais lembrada. O que tem esta ilha de especial?
contratorpedeiro “Lima”. O tempo bonançoso permitia que o mari- A Vila de Nova Sintra. Local espectacular, lindíssimo, aprazível, a
nheiro artilheiro Vitorino, nosso barbeiro e actor cénico de grande mais de 400 metros de altitude e a bela Praça de Eugénio Tavares,
gabarito, com provas dadas na anterior comissão na Índia, atendes- escritor e compositor de mornas. “Dja Brava” tem ainda excelen-
se Sua Excelência para um “caldinho no cabelo”, usando a bata bran- tes intérpretes. Mais uma vez, tive a felicidade de reviver a “Nha
ca emprestada pelo enfermeiro, o 1SAR H Albergaria. Depois, com Cretcheu”, a “Moreninha”, a “Sôdade” (tão divulgada pela genial
ar importante, recusava contar as conversas que tivera com o nosso Cesária Évora) e a inesquecível “Ora Di Bai” de B. Leza. Sô Bileza,
General. natural de S. Vicente, também autor de músicas e letras de mor-
Embora a ordem de visita fosse a inversa, entendi começar a es- nas. Uma delas foi dedicada ao Comandante Cisneros da velha
tória pela Madeira. Da Pérola do Atlântico, para além da sua beleza “Sagres”. Cito de cor: “Selô, Selô, barca Sagres, Noiba di mar, ama
reconhecida por todo o mundo, nada mais há a registar, excepto ter de marinero, Ninfa di Tejo di porte faceiro, qui onda de oceano tá
sido o local onde o PR foi mais calorosamente recebido. Da Guiné, bejá, brisa di espaço tá miná, Strela di mar, bô é mansa e garbosa,
recordo o rio Geba, a bonita e larga avenida de Bissau, o Palácio do Aiii!!... com bô ar di rainha, di traço divinal, bô é noiba di marinha,
Governador e a Praça com a estátua de Honório Barreto, ilustre gui- di nosso qrido Portugal”.
neense, Governador e patriota como poucos. Além da presença de E na Ora di Bai abraça-se fortemente os amigos, disfarça-se
alguns régulos a cavalo, não observei manifestações. Não vejo outra umas lágrimas e… até um dia.
explicação senão a diversidade de etnias (Balantas, Fulas, Papéis, Que sôdades… do mar…
Grumetes, Mandingas, Bijagós, Majancos, Felupes...) e muito anal-
fabetismo. Teodoro Ferreira
Eis-nos chegados a Cabo Verde. A mais lusa e romântica das ter- 1TEN SG REF
ras que conheci. S. Vicente. Atracámos à muralha no Porto Gran- N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
28 MAIO 2016