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Kristang (cristão-português), falado sobretudo por mestiços, que da genética”, foi um ensinamento bem utilizado pelos portugueses
mais tarde se tornaram “heróis do comércio”, porque a língua quase dois milénios depois? Convido os leitores a regressarem ao
passou também a ser usada nas operações comerciais. primeiro parágrafo deste artigo e dele, possivelmente, tirarem al-
gumas conclusões.
Em Macau, a concubinagem generalizou-se, de que resultaram
gerações de luso-macaenses. “São eles os descendentes dos bons Em boa verdade histórica e antroplógica, o nosso país nasceu mis-
portugueses que aqui construíram o seu lar e honradamente cria- cigenado. O nosso património genético, as sucessivas transferências
ram a sua prole; apenas não sabiam que Macau era só nossa da cultura e da herança geracional e, quiçá, o arquétipo do homem
por empréstimo e que um dia teríamos de a devolver, bonita e português descobrimentista que, “comportou-se como tendo tido
próspera.”7 mãe, mas foi sempre órfão de pai”12, ao longo de muitos séculos,
permitiu que os portugueses se miscigenassem sem hesitação com
A identidade nacional da República Democrática de Timor-Leste diversos povos, alguns significativamente diferentes e em muitos
teve como vetor o regime colonial português que durou quase lugares distintos, de que resultou uma coexistência pacífica, man-
meio milénio, pelo que é natural que desse convívio secular, a par tendo assim viável, por várias centenas de anos, um dos maiores e
de muitas e conhecidas dissensões, se tenham firmado afetos em certamente mais influentes impérios da humanidade. Deus inven-
consequência da história, da religião e da língua comuns. Por outro tou o branco e o preto, mas foi o português que inventou o mestiço.
lado, como resultado da miscigenação e dessa convivência secular,
surgiu uma realidade cultural própria que inclui aspetos comuns às Amaral Mota13
culturas em longa interação.8 CMG
Outra característica própria do império português, em contraste Notas
com os impérios holandês e britânico, foi o facto da conversão re-
ligiosa ter sido um importante fator para a integração dos grupos 1 PAGE, Martin. A Primeira Aldeia Gobal. Como Portugal mudou o Mundo. Lisboa,
autóctones.9 A própria natureza católica missionária, fortemente Editorial Notícias, 2010
marcada pelo pragmatismo jesuíta e possivelmente encarando a
miscigenação como um natural catalizador de fiéis, era substan- 2 PMESII – Political, Military, Economic, Social, Intelligence and Infrastructural/
cialmente diferente do comportamento protestante, “das virtudes /DIME – Diplomatic, Intelligence, Military and Economic. Ver também artigo
públicas e pecados privados”, presente entre essas potências co- “Comprehensive Approach dos Descobrimentos às Colónias” nas edições 495 e
loniais. Na verdade, neles recaía uma desconfortável incompreen- 496 de ABR e MAI de 2015 da Revista da Armada.
são quando se deparavam com a presença portuguesa, nos mais
remotos lugares ou numa longínqua praia, perfeitamente estabe- 3 Cancioneiro popular de Alcácer do Sal.
lecidos em atividades comerciais diversas e vivendo harmoniosa- 4 C ABAÇO, José Luís. Pontos de vista sobre a descolonização em Moçambique:
mente em família com as gentes locais.10 11
identidade, colonialismo e libertação. São Paulo, Editora da Unesp, 2009.
O uso deste elemento genético foi uma deliberada alavanca da 5 SARAIVA, José António. in Jornal EXPRESSO. Lisboa, 2000.
estratégica nacional como instrumento do poder dos Reinos e das 6 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Livros do Brasil, Lisboa, 1933.
Repúblicas, a par do político, do militar, do económico, do social, 7 FERREIRA, José dos Santos. Cit.,1996.
das informações e das infraestruturas (PMESII). A história repete- 8 A identidade nacional de Timor-Leste. Revista Sábado, Lisboa, 2015.
-se ciclicamente e quem a estuda procura repetir os sucessos do 9 S ANTOS, Fernanda. Estratégias de justificação para a conversão do gentio nas
passado. Será que, à semelhança do que Alexandre o Grande fez
330 anos a.C. quando pensou que fosse útil promover casamentos missões jesuíticas. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n.
dos seus súbditos leais com mulheres dos diversos territórios que 12, Janeiro 2012
ia conquistando, para assim ir deixando na sua esteira uma “pega- 10 L INSCHOTEN, Jan Huygen van. Itinerário, Viagem ou Navegação para as Índias
Orientais ou Portuguesas, Ed. Arie Pos e Rui Manuel Loureiro, Lisboa, 1997
11 CORREIA, Clara Pinto. Entrevista à Antena 1 Ciência, 02 de outubro de 2012
12 BELO, Maria. Filhos da mãe. Edeline, Lisboa, 2007.
13 F ilho de pais do profundo interior nordeste português (Sabugal e Vila Nova de
Foz Côa), bisneto de descendentes de judeus cristãos-novos, infância na África
do Sul e em Moçambique, adolescência no Brasil, primo de mestiços brasileiros,
tio de um mestiço anglo-saxónico e tio-avô de outro mestiço suíço.
20 AGOSTO 2016