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REVISTA DA ARMADA | 510

No século XVI, um em cada cinco habitantes da cidade de Lisboa       co – e a nossa cultura diz que aquele que cresce connosco no
era negro e milhares, mais resistentes ao paludismo, trabalharam     quintal é irmão.”5
nos arrozais sadinos saturados de mosquitos. A Ribeira do Sado
é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio          O norte da Ilha de Moçambique tem os maiores e mais exten-
Sado, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de       sos vestígios da miscigenação portuguesa e não só. “A empresa
Grândola, a Vila Morena.                                             colonial era um ato de cultura e a contradição racial se resolve
                                                                     com o mestiço.”6
“Ribeira do Sado,	     Quem quiser ver moças
Ó Sado, Sadeta.	       Da cor do carvão                                Cabo Verde e São Tomé e Príncipe foram as primeiras sociedades
Meus olhos não viram	  Vá dar um passeio                             crioulas do mundo atlântico. A crioulização foi um inegável proces-
Tanta gente preta.	    Até São Romão.”3                              so de miscigenação com um cunho acentuadamente português.

  Tal como no Sado, nos arrozais do vale do Rio Sorraia, junto         Na Índia surgiram os “prestigiados descendentes”, por serem
à Vila de Coruche, verificaram-se fenómenos semelhantes, mas,        bem vistos casamentos com portugueses, apesar do sistema fe-
contrariamente ao que sucedeu nesse recanto alentejano, dificil-     chado de castas que limitava os enlaces matrimoniais. O teme-
mente se observam traços africanos entre os atuais habitantes        rário Afonso de Albuquerque conquistou Omã, Goa, Malaca e
de Coruche. Contudo, não existem dúvidas de que estão pre-           Ormuz e começou logo com o seu plano de miscigenação, ape-
sentes, mas são dificilmente reconhecíveis por um olho menos         lando ao casamento de marinheiros e soldados portugueses com
especialista.                                                        mulheres indianas, para que as ligações entre os dois países se
                                                                     fortalecessem. Através dessa fusão, os laços estreitaram-se, os
  A maior fatia do império português até ao século XIX era o Bra-    interesses mútuos multiplicaram-se e a aceitação dos portugue-
sil do qual é comum pensar que é dos países mais mesticizados        ses naquelas paragens era mais facilmente consentida. Só assim
do mundo. Aqui teve lugar a maior miscigenação do globo entre        foi possível consolidar o império no Índico. Na altura, o Vice-rei
os indígenas, maioritariamente de origem tupi-guarani, os africa-    tinha por procedimento habitual oferecer valiosas prendas aos
nos predominantemente bantus de Angola, de Moçambique e do           portugueses que desposavam as chamadas “mulheres de Goa”.
Congo, e os portugueses brancos da metrópole.
                                                                       Como ele escreveu: “nos holhos das gemtes da Ymdia está
  Nos anos 60 do século passado, e com os ventos de mudan-           asemt­ado fazermos nós fundamento da terra, pois vem aos ho-
ça em África por força da paulatina independência das colónias       mens pramtar árvores, fazer casas de pedra e call e ter filhos e
francesas e inglesas no continente, o governo de António de          filhas”. Apesar das exemplares instruções régias sobre o dever de
Oliveira Salazar fincou o pé, recusando peremptoriamente abrir       relações harmoniosas entre raças, a ação das autoridades locais
mão do império. Ressuscitando o velho adágio da miscigenação,        revelava os preconceitos raciais da época. Dom Manuel I ordenou
Salazar foi buscar no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre a inspi-  tratar os convertidos asiáticos em pé de igualdade com os portu-
ração académica de que precisava para dar corpo à estratégia por     gueses e nas queixas sobre faltas de igualdade a Coroa sempre
ele definida4. Para Angola, rapidamente e em força!                  interveio a favor dos queixosos. A estratégia cultural executada
                                                                     por Afonso de Albuquerque há 500 anos ainda se mantém viva na
  Benguela é a província angolana onde há mais miscigenação. É       cidade malaia de Malaca, através da manutenção do património
o Brasil de Angola. Há pretos, mulatos de vários tons e brancos.     mas também de uma comunidade que luta por preservar um dia-
“O chefe de protocolo do governador, o senhor Toni, é um branco      leto de origem portuguesa. A falta de recursos humanos para de-
louro, de olhos azuis. Quando pergunto ao governador se há aqui      fender a região conquistada, na altura uma das mais importantes
racismo ele responde taxativamente que não: Não há nenhum            do mundo para fins comerciais, levaram o militar a apostar na vin-
angolano que não tenha um amigo de infância, de quintal, bran-       da de portugueses para Malaca com o propósito de constituírem
                                                                     famílias entre os locais. Esta miscigenação deu origem ao idioma

                                                                                                                                          DR

                                                                     AGOSTO 2016 19
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