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REVISTA DA ARMADA | 526
ESTÓRIAS 38
GUINÉ – O ELO FRÁGIL
entado no alpendre das messes, olhava sem ver para
Sonde a vista me levava, talvez para lá do tarrafo, bem
na margem sul do Cacheu, perto dos acontecimentos que
dias antes nos haviam colhido de surpresa, numa opera-
ção lançada no fi nal da época seca, para destruir celeiros
e sementeiras, contrariando a logísƟ ca de guerra do IN.
Ao contornar uma orla de bolanha, demos de caras
com um grupo de homens e mulheres que preparavam a
sementeira. Ao avistarem-nos, puseram-se em fuga. Ape-
sar de ordens para parar não o fi zeram e houve disparos.
No terreno fi cou um homem velho com um Ɵ ro numa
perna, que sangrava abundantemente.
O enfermeiro fez-lhe um garrote e foi pedida a sua eva-
cuação. A resposta, já esperada de resto, foi de que não
havia evacuações para o IN. Explicado que se tratava dum
elemento da população, a resposta foi peremptória – não
havia disponibilidade de helis.
A operação ia durar mais dois dias e não podíamos carregar com pia verƟ ginosamente e com grande desenvolvimento verƟ cal,
um homem pesado e por isso houve que pensar na solução mais como se desejasse ligar o Céu e a Terra. Também ela transporta
cristã, que seria matá-lo, evitando uma morte dolorosa e prolongada. desígnios de destruição no seu trajecto.
Pedidos voluntários, não apareceram e eu também não fui capaz Fomos para dentro, fechámos portas e janelas e quedámo-nos
de o fazer. apreciando a violência, agora da Natureza, como se procurasse
Optou-se por deixá-lo com o garrote, depois de injectado com fazer jusƟ ça pelas próprias mãos.
morfi na para as dores. Foi-lhe recomendado que, de vez em Durou cerca de dois minutos. No seu caminho, o tornado seco
quando, aliviasse a pressão do garrote. encontrou um anƟ go barracão de chapas de zinco, que servira
Dois dias depois, terminada a operação e já de regresso ao ponto para armazenar mancarra e que dava agora guarida aos nossos
de reembarque, entendi fazer um desvio para passar pelo local manƟ mentos. Da sua cobertura não restou uma só chapa. Algu-
onde o havíamos deixado. mas delas foram encontradas a mais de dois quilómetros de dis-
Não havia ninguém no local. Não havia rastos de sangue a não tância, levadas como se fossem plumas.
ser no preciso lugar em que havia sido tratado. O seu estado geral As instalações onde nos encontrávamos foram poupadas à des-
não lhe permiƟ ria ter sobrevivido por muito tempo, a não ser que truição, mas não escaparam a um banho de poeira vermelha, fi na
Ɵ vesse sido de imediato socorrido. como o ar que a transportou.
Quisemos todos acreditar que sobreviveu. Fina e vermelha como a imagem que tenho de dor e morte.
A vida e a morte andam de mão dada, sem que ninguém se aper-
ceba da fragilidade do elo que as liga. Estar no lugar errado, estar Ferreira Júnior
dependente duma evacuação ou de não haver voluntários para dar CMG
o golpe de misericórdia, por fi m de haver alguém com um mínimo N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
de meios e capacidade para uma intervenção de emergência.
Ao longe, a vista anima-se com uma nuvem vermelha que rodo- Nota: Extraído do livro “TERRA-MAR-E-GUERRA – Cogitações de um Marinheiro Alentejano”
LIVROS
A Revista da Armada felicita os autores e agradece os exempla-
res oferecidos, que contribuem para o enriquecimento da nossa
biblioteca:
- Língua Mirandesa – Manifesto em forma de hino,
Amadeu Ferreira
- Contas que minha mãe me contava…
António Cangueiro
- Angola 1961 – História e Estratégia de um confl ito,
Henrique Gomes Bernardo.
FEVEREIRO 2018 29