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REVISTA DA ARMADA | 526


           NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                      67


           A razão das coisas…




           Não fechei os olhos
           Não tapei os ouvidos
           Cheirei, toquei, provei
           Ah Eu!
           Usei todos os senƟ dos
           Só não lavei as mãos
           E é por isso que eu me sinto
           Cada vez mais limpo! (…)                                                                              Desenho de Paulo Guedes
           In “Daquilo que eu sei”, Ivan Lins, cantor brasileiro


            ivemos numa época estranha, onde frequentemente noções   “pelo regime de livre escolha” terá que negociar diretamente com
         Vbásicas como o bem e o mal, o sen  r e o saber, o medo e a   os serviços de apoio social, ou, em alterna  va, pedir transferência
          coragem se confundem, ou são mal aceites pela cultura vigente. Os   para o HFAR (…ser rico também é uma alterna  va, no entanto afi -
          médicos que trabalham na gestão da fi na linha que separa a saúde   gura-se vedada à grande maioria dos militares).
          da doença, a vida da morte, assistem, frequentemente, às transfor-  À pergunta (que a esta hora nasceu na mente do imagina  vo e
          mações na alma dos seus pacientes, que, por vezes, também são   paciente leitor destas crónicas) se no Serviço Nacional de Saúde
          uma mescla de todas aquelas emoções. Conheci, neste contexto,   (SNS) estas situações estarão cobertas, a resposta é inequivoca-
          muitos homens “extremamente saudáveis” e outros “rijos que nem   mente sim. O SNS é Universal e, mediante uma pequena taxa mode-
          pedras” (nas suas próprias palavras) que tremiam perante a anteci-  radora, todos os tratamentos estão incluídos – chegando-se mesmo
          pação de um qualquer mal e, outros ainda, muito menos “fortes”,   a compar  cipar tratamentos no estrangeiro, quando a arte médica
          que suportaram, com a dignidade de uma batalha, as várias “indig-  o impõe, por valores que dariam para comprar um pequeno avião…
          nidades” a que a Medicina e a vida os sujeitaram…   Ainda bem que assim é… por isto alguns intelectuais afi rmam (e eu
           Ora, atualmente, indignidades de outro   po estão no silêncio das   concordo) que o SNS foi a maior vitória da democracia que (precisa-
          almas. Estes novos constrangimentos são igualmente desafi adores   mente) os militares facilitaram no 25 de abril de 1974.
          do ponto de vista da saúde individual de todos e das a  tudes da   Então, “pela razão das coisas”, as compar  cipações são boas para
          Medicina dita moderna. Imagine o leitor um militar al  vo, daque-  os “adoentados”, mas são insufi cientes para “cobrir” as despesas
          les que transbordam autossufi ciência, de um es  lo conhecido na   dos “gravemente doentes”. Se juntarmos a esta equação a noção,
          Marinha como de “Sudoeste Rijo”, com fortes provas operacionais   testada pela prá  ca, de que as grandes ins  tuições de saúde visam,
          e acreditando, enquanto embarcado, que isto das doenças “era   antes de tudo, o lucro dos acionistas, fácil será perceber o risco
          uma invenção dos médicos”. De repente e sem aviso, sente o chão   comum que muitos militares, dos vários ramos, correm… e a preo-
          fugir-lhe com uma síncope que o ia levando desta terra. Comple-  cupação da ins  tuição em causa (em assegurar o seu pagamento).
          tamente contra as ins  tuições de saúde militar (mesmo quando   É por isto que sofro quando ouço expressões como: Já não preci-
          ainda exis  a Hospital da Marinha), recorre a um hospital privado   samos do Hospital das Forças Armadas, temos os privados… ou, a
          de Lisboa.                                          tão frequente e direta, vocês (o Hospital das Forças Armadas) não
           A situação clínica era de facto grave. Foi admi  do, fez inúmeros   conseguem compeƟ r em qualidade. A que eu respondo, de forma
          exames nos dias seguintes, até que se percebeu que precisava de   jocosa, que as crí  cas têm absoluta razão. Eu também pretenderia
          uma determinada “prótese vascular” que lhe salvaria a vida. Só   ter um “front offi  ce” (palavra fi na e da moda), cheio de simpá  cos
          havia um problema: a prótese custa mais que dois carros de alta   colaboradores femininos. Adoraria ter dezenas de administra  vos,
          gama e, lamentavelmente, esse militar e a sua família descobri-  no apoio visível, ou escondido, ao marke  ng da saúde, e até pre-
          ram (por informação do próprio hospital privado) que não haveria   tenderia (desejo verdadeiramente utópico) não ter que reajustar,
          compar  cipação segura para estas despesas. No âmbito do que se   con  nuamente, a agenda das consultas por impera  vos operacio-
          passou a designar por “livre escolha” (situação em que o paciente   nais, que comprometem médicos e enfermeiros (muitas vezes sem
          decide recorrer a prestadores privados), as compar  cipações são   redundância garan  da, ou sequer grande aviso prévio)…
          vocacionadas para consultas e exames de caráter simples, quase   Os médicos militares, e restantes técnicos de saúde, também
          sempre em contexto ambulatório. O Hospital das Forças Armadas   foram envolvidos no turbilhão da mudança, que cons  tui a reforma
          está, estatuariamente, impedido (nem para isso teria orçamento) de   da saúde militar. Alguns saíram, tal o descontentamento. Aqueles
          compar  cipar internamentos ou intervenções que não tenham par-  que “não lavaram as mãos”, fi cando e usando “todos os sen  dos”,
            do da ação de clínicos seus, ou seja, correspondendo a pacientes   são sensíveis às crí  cas. Todos gostariam de ter um Hospital tecnica-
          inicialmente admi  dos no sistema de saúde militar (SSM).  mente diferenciado, com todas as capacidades dos outros hospitais
           Ora, se o leitor forçar um pouco mais a sua imaginação, com-  – públicos ou privados. É um desiderato que depende de múl  plos
          preenderá que, em face da necessidade, surgiu na mente do   fatores, mas que – não me canso de repe  r – precisa de todos. Estou
          paciente que o an  go camarada militar, médico de tantos embar-  certo que só assim, em conjunto, mudaremos esta “razão das coi-
          ques, agora poderia ajudar. Claro, foi di  cil explicar a um amigo,   sas”… Desejo daqui boa ventura ao herói desta história. Espero que
          ainda mais numa posição de fragilidade (em contraciclo com a sua   a  nja a bonança para além do Cabo da Boa Esperança…
          natureza), que não, que lamentavelmente nada se poderia fazer…
          Pela “razão das coisas” atual, quem recorre ao serviço privado                                     Doc


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