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REVISTA DA ARMADA | 527


           NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                      68



          O Xaroco, os amigos e a nossa alma…




            á não muito tempo um conjunto de Ofi ciais, da
         HMarinha e da Força Aérea, foi ao Sul de França em
          missão ofi cial. Pretendia-se, previamente à decisão
          de compra pelo estado português, ajuizar das condi-
          ções técnicas de um navio logísƟ co que a Marinha de
          França pretendia alienar: o Siroco . Este navio – que
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          serviu a França como navio logísƟ co – tem um com-
          ponente da saúde operacional importante. Estrutura
          que era preciso ajuizar por um perito médico. Foi aqui
          que, na minha alma, começou esta história…
           Assim, criou-se uma Força-Tarefa Aeronaval que
          integrou um médico, um piloto de helicópteros, um
          engenheiro da Força Aérea e um conjunto de enge-
          nheiros e técnicos da Marinha. Lá embarcámos todos
          para Toulon, sede de uma grande base naval francesa.
          Era junho e estava bom tempo. As peripécias que se
          seguiram foram muitas.
           As aventuras começaram logo à chegada a Toulon.                                                       Desenho de Paulo Guedes
          Sabíamos que haveria um Hotel, que como manda a
          lei, no que aos militares diz respeito, só poderia ser
          de três estrelas, mas era preciso encontrá-lo. Foi aí
          que alguém no grupo, reconhecido pela sua mestria na gestão de   Em relação à hospitalidade, não posso deixar de louvar as refeições
          um GPS de telefone, nos guiou… através de Toulon, onde pudemos   a bordo, servidas na substância e na arte de acordo com as melho-
          observar as belas ruas, praças e jardins, até percebermos que o   res tradições de “la cuisine française”. No que ao domínio da língua
          hotel, esse, estava apenas a cerca de 200 metros da estação de Tou-  francesa se pode dizer é que, certamente, alguns falavam “la belle
          lon, onde havíamos chegado. Claro, não houve qualquer problema,   langue” melhor que outros. Contudo, todos se fi zeram perceber.
          fi cou claro que se pretendia um reconhecimento operacional da   Esta foi a minha úlƟ ma aventura naval e, recentemente, lembrei-
          área antes de chegada à base das operações; também se aceitou   -me dela, porque encontrei casualmente outro dos ofi ciais presentes.
          que os rolamentos das malas, modernas ou anƟ gas, que cada um   Lembro-me também desta viagem, sempre que alguém me pergunta
          transportou, precisavam de manutenção, ora as bem esƟ madas vias   o porquê da minha ligação naval, uma vez que, na aparência, para
          da cidade serviram perfeitamente para o efeito.     muitos outros médicos estas missões servem apenas como empeci-
           O hotel, que não esquecerei, pois acentuou a diferença interpre-  lho. É então que me lembro que, nestas e noutras missões, guardei
          taƟ va de três estrelas em Portugal, versus a mesma qualifi cação em   amigos (amigos verdadeiros) para a vida e recordações que não se
          França,  Ɵ nha  caracterísƟ cas deveras interessantes. Percebendo a   compram, nem se explicam, nos panfl etos das agências de viagem.
          consƟ tuição eminentemente naval da delegação, verifi cou-se que   Nesta missão também fi z boas amizades com os militares da Força
          na maior parte dos quartos, o nível da base do chuveiro era exata-  Aérea que se integraram bem no maior grupo naval. Reparei, con-
          mente o mesmo do nível da restante casa de banho e, claro, para   tudo, que determinado ofi cial piloto Ɵ nha uma especial adoração
          não destoar, o nível da casa de banho era (ao milímetro) o mesmo   por headphones, sobre os quais discuƟ a os mais detalhados porme-
          do restante quarto. Ou seja, o simples banho que se prolongasse por   nores, quanto aos aspeto e qualidade sonora. Achei que, naquele
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          mais de 5 minutos punha em práƟ ca o princípio de Arquimedes ,   meio naval, aqueles objetos consƟ tuiriam a sua ligação ao helicóp-
          muito querido das marinhas do mundo. Isto é, permiƟ a aferir se os   tero que para trás fi cou...
          sapatos fl utuavam, ou fi cavam pura e simplesmente encharcados –   O Xaroco não fi cou entre nós, todavia uma parte dele fi cará para
          não podendo, desta forma clara, pertencer a ofi ciais navais dignos   sempre portuguesa. Pelo menos na alma dos heróis anónimos desta
          desse nome…                                         aventura de logísƟ ca... aeronaval.
           O navio lamentavelmente não era novo e, sim, havia algumas sec-
          ções especialmente usadas... Não era o caso da secção de saúde,                                    Doc
          que apresentava um mini-hospital completo, com duas salas opera-
          tórias, salas de cuidados intensivos e intermédios, banco de sangue,   Nota
          salas de isolamento e todo o equipamento estava em boa ordem   1  O siroco ou xaroco (em italiano scirocco e em árabe ghibli) é um vento quente,
          de uƟ lização. Com o decorrer dos dias outros ofi ciais passaram a   muito seco, que sopra do deserto do Saara em direção ao litoral Norte de África,
          demonstrar algum interesse na saúde a bordo. Isto aconteceu espe-  comummente na região da Líbia. Este fenómeno causa gigantescas tempestades de
          cialmente quando se percebeu que todo o pessoal era extrema-  areia no deserto e manifesta-se quando baixas pressões reinam sobre o mar Medi-
                                                               terrâneo. Frequentemente o siroco, sem humidade devido ao efeito Föhn, cruza o
          mente simpáƟ co. Nas outras secções, pude perceber, o relaciona-  Mediterrâneo aƟ ngindo  com violência o sul da Itália e, em certas ocasiões, chega
          mento foi também sempre cordial, evidenciando uma hospitalidade   até à Costa Azul e à Riviera francesa.
                                                                 Todo o corpo imerso num fl uido sofre ação de uma força (impulsão) verƟ calmente
          que muito honorou os marinheiros franceses presentes e as mais   2 para cima, cuja intensidade é igual ao peso do fl uido deslocado pelo corpo.
          nobres tradições navais…


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