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REVISTA DA ARMADA | 527
ESTÓRIAS 39
CICLOTURISMO
odos os rapazes do meu tempo, e não só, sabem quem foram nova paragem para apreciar e aplaudir uma afi nadíssima banda
TJosé Maria Nicolau e Alfredo Trindade. De qualquer modo, fi larmónica do Nordeste. Aí, foi-me perguntado por um músico
sempre direi que o primeiro foi ciclista do Benfi ca e o segundo se conhecia a estrada que ơ nhamos pela frente e se íamos descer
do SporƟ ng. Ambos com 2 vitórias na Volta a Portugal em Bici- a ladeira nas bicicletas, pois a descida era muito perigosa. A mãe
cleta. Desde logo, uma rivalidade que dividia os portugueses e, Providência estava do nosso lado. E assim acautelados, iniciou-
como tal, o mesmo acontecia a bordo, pese embora o facto de -se a descida para as Furnas com as bicicletas pela mão. Mas o
em 1948, altura em que se passou a estória que irei relatar, não “Faísca”, 1º Grumete Fogueiro, quis arriscar e, desrespeitando o
haver “A Volta”, ora interrompida durante a segunda guerra mun- sério aviso, avançou para muito em breve se aƟ rar para a valeta
dial (1939/1945) e ainda por alguns anos mais. por não se controlar. Custou-lhe umas boas esfoladelas e forte
S. Miguel, Ponta Delgada, a bordo do NRP Lima em comissão admoestação geral.
nos Açores. Era Comandante o Capitão-Tenente Diogo de Melo E, fi nalmente, a chegada às Furnas, com muita gente curiosa que
e Alvim, tendo como Imediato o Primeiro-Tenente Gomes e nos olhava espantada. A visita às “caldeiras” onde alguns coziam
Trindade. Entre a guarnição estava o “Estoril”, 2º Marinheiro ovos na lama vulcânica, em ebulição, e logo um merecido des-
ArƟ lheiro com a sua “bicicleta de corrida” e que
da modalidade – corridas, claro – sabia mais
que ninguém. Após os serviços era vê-lo a sair a
prancha e ir dar a sua volƟ nha. Corria a muralha
de uma ponta a outra com sprints e tudo. Estas
demonstrações despertaram na rapaziada a
ideia, louca para alguns, de um passeio turísƟ co,
de bicicleta, pois claro, pela ilha. Mesmo não
sendo dos mais entusiastas, coube-me a tarefa
de organizar tal desiderato e logo fi cou assente
que seria às Furnas. Fui falar com o Sr. Imediato,
que me ouviu com toda a atenção, ora olhando
para mim ora para o mapa, cópia manual da
carta náuƟ ca da ilha de S. Miguel, onde estavam
marcados os locais de passagem bem como as
horas previstas de parƟ da e chegada, e a auto-
rização foi dada, não sem alguma relutância e
muito espanto, pois não imaginava ter tantos
doidos a bordo. Depois de breve explicação
sobre a função do navio no apoio à aviação, da
responsabilidade que ele assumia, etc., etc.,
pediu o máximo de cautela e que comunicasse
com o navio se necessário. Com a logísƟ ca a
funcionar (o aluguer das bicicletas, canƟ s com água e bolacha canso. Tínhamos percorrido cerca de 60 Km. Fizemos um bom
capitão e o equipamento uniforme, ou seja, calção, camisola e repouso estendidos na relva. Nós e as bicicletas, obviamente.
botas da ordem) tudo fi cou pronto e, às 06h00 do dia aprazado, O regresso foi mais complicado. Passada Vila Franca do Campo,
largámos. enfrentámos a subida para o Alto da Lagoa, novamente com as
Desde logo se reparou que a bicicleta do Flores, 2º Marinheiro bicicletas à mão, mas agora puxando por elas. Foram uns penosos
ArƟ lheiro, Ɵ nha pendurada no quadro uma retenida. Com Ponta quilómetros. Depois, passada a povoação de Livramento, já com
Delgada já deixada para trás e por alturas de S. Roque é feita a noite a aproximar-se, ligaram-se os farolins e até Ponta Delgada
a primeira paragem, a sinal de uma senhora que nos esperava foi um pedalar moderado, pois as forças já escasseavam, excepto,
especada no meio da estrada e, pasme-se, equipada a rigor e claro, para o “rebocador Flores” e para a senhora que vinha, calma
de bicicleta. Feita a apresentação, a dama era uma namorada e sorridente, a reboque. A chegada ao navio fez-se já perto das
do Flores e, então, fez-se luz. A retenida era para a rebocar e 23h00. Os cicloturistas foram dormir o sono dos justos.
desde logo o aviso de “água aberta a bordo”. Devo adiantar que Dois dias depois o “Açoriano Oriental” trazia em destaque:
a presença da senhora em nada perturbou o programa previsto “Marujos ou diabos” e salientava o feito, pois na ilha jamais
e até serviu para conter alguma expressão naval mais cabeluda. alguém o fi zera. Pode-se justamente parafrasear Mark Twain:
E toca a pedalar. Após percorridas, alegremente, duas dezenas “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”.
de quilómetros, chegámos à Ribeira Grande e, com mais umas E, já com saudades do mar…
pedaladas, a São Brás, onde desmontámos para um breve des-
canso. Tudo muito agradável, paisagem lindíssima, hortênsias a Teodoro Ferreira
separar terrenos, muitas estufas de ananases e boa disposição. 1TEN SG REF
Logo a seguir e pouco antes da descida para as Furnas, fez-se N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
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