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ESTÓRIAS 40
MARINHEIRO
ualquer dicionário nos diz ser aquele homem empregado na
Qmanobra de um navio; aquele que conhece a arte de governar
um navio ou que gosta do mar e da vida maríƟ ma e por aí fora. Mas
o pior, ou o melhor consoante os gostos, é que diz mais: Os algarvios
são marinheiros do coração. Nada mais certo e premonitório. Senão
vejamos:
Nasci em Lagos, a velha Lacóbriga, no Barlavento algarvio, elevada
a capital da província pelo rei D. SebasƟ ão em 1573 (conforme o meu
livro de História da 4ª classe). Esta minha e a mais bela cidade do
planeta fi ca a escassa distância do Cabo de S. Vicente, que Estrabão
(63 a.C.) chamou de Cabo Sagrado e o mais a ocidente da Europa e
do mundo habitado. A casa onde vim ao mundo situa-se em ponto
alto da freguesia de S. SebasƟ ão, junto à igreja do mesmo nome, e
pela janela do quarto avista-se a baía em toda a sua plenitude. Abri
os olhos e o que vi? O mar. Tive, então, admita-se, o meu primeiro
pensamento: tou lixado. deiros electricistas na vizinha Escola de Mecânicos. (Era exigido o
Pouco interessa o que adiante se passou. A instrução primá- 5º Ano Industrial).
ria seguida do Curso Industrial (Serralharia) na Escola Industrial e Os anos passaram. Cada um de nós singrou de acordo com a rota
Comercial João de Deus, em Silves, para onde me deslocava diaria- que lhe foi determinada. A vida em comum, onde o problema de
mente de comboio. Aprendi a forjar e a temperar material de corte, um é problema de todos, transfi gurou-nos e enraizou em nós algo
a uƟ lizar máquinas e ferramentas (torno mecânico, fresa e outras), de belo, um senƟ mento de qualidade insuperável, a fraternidade.
soldadura oxi-aceƟ lénica, tecnologia (ligas metálicas, materiais fer- Este conceito fi losófi co de humanismo perdurará para toda a vida,
rosos), desenho de máquinas (projecção, corte e perspecƟ va), etc., para todo o sempre, e na Marinha, especialmente na Marinha, é o
etc., para depois aplicar esta formação profi ssional numa loja a ven- embrião de que nascem a tradicional amizade e sã camaradagem,
der chapéus, camisas e gravatas. Nesta desconformidade, e ainda tal como, em paralelo, as bases que edifi cam o homem de carác-
pelo facto de o meu irmão já estar na Marinha (também ele tocado ter: a instrução militar, o respeito pelos regulamentos, a disciplina, a
pela mesma premonição) e de me enviar lindíssimos postais de ter- instrução (especialização) donde resulta a competência necessária e
ras longínquas, decidi dar cumprimento ao desƟ no e, assim, quando exigida, dado que cada um no seu posto diferenciado confi a na efi -
dei por mim, estava na Escola de Alunos Marinheiros, em Vila Franca cácia dos outros, desde o reputado Comandante ao humilde “capi-
de Xira. Como bagagem, apenas a necessidade de respirar outros tão” (grumete encarregado do lixo, vassouras e sanitários), qual puz-
ares e uma razoável noção de humildade. Esta virtude de reconhe- zle onde as peças mais coloridas e as mais apagadas se interligam e
cer os próprios erros e ainda a dignidade foi tudo o que herdei dos se complementam para o êxito da missão.
meus pais. Pela parte que nos toca, Alunos Marinheiros, ouso afi rmar, funda-
Éramos 141 rapazolas, fi lhos de outras tantas mães, mas que nos mentado em 43 anos de serviço, que soubemos honrar a Pátria e
tornámos irmãos, “Filhos da Escola” do 5º alistamento (1943). Os sem o constrangimento da sua contemplação. Mais não fi zemos que
números começavam no 424 (Chefe dos chefes de rancho, conforme seguir o exemplo dos que nos antecederam. Pois, em boa verdade,
se inƟ tulava) até ao 565 (o mais marreta). Recordo o nosso coman- os navios já antes navegavam, fi zeram-no connosco e agora, sem
dante, Cap.-Ten. José António Spínola, o tenente Fontes do SG, já nós (embora pareça incrível, mas cientes de que não há insubsƟ tuí-
velhote, o contramestre João (2º sarg. de manobra), os cabos e veis – os cemitérios estão cheios deles), conƟ nuam a navegar.
marinheiros instrutores e outros, que a memória vai falhando. Nós, os que começaram de baixo e muito mais cedo, moços com
Recordo as fardas larguíssimas onde cabiam dois de nós, as brin- 16 e 17 e 18 anos, reivindicamos ser mais marinheiros, mais salga-
cadeiras e irreverências próprias da idade: as corridas no balneário dos (temperados) que muitos outros. Esses tempos são hoje recor-
com o chão ensaboado e ver quem deslizava mais de sku; as asneiras dados com lágrimas e sorrisos roídos pela saudade, sobretudo e
gritadas em hora de silêncio e logo um instrutor: d’aqui… (dava uns dolorosamente, pelos que já nos deixaram e lá esperam por nós.
largos passos) até aqui, ferra macas! Depois para fora da caserna “Filhos da Escola”, Queridos Irmãos, Digníssimos Camaradas,
com os chouriços às costas durante, pelo menos, 2 horas. Recordo enfi m: Marinheiros.
a vassoura para quem queria ir à missa; recordo o pré (30$00) rece- Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal.
bido e logo largado num cesto de papéis estrategicamente colocado Com muitas saudades do mar,
à porta do gabinete do ofi cial de dia.
Recordo as aulas de canto coral dadas por um músico da Banda da Teodoro Ferreira
Marinha e uma canção lindíssima: Deixa a costa de ríspidas fragas 1TEN SG REF
1
porque o mar tem mais luz e mais cor... N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
E tantas outras lembranças que fi cam comigo por falta de espaço
para as relatar... Nota
Depois, a separação. Os meus irmãos para a Sagres (a velha) e 1 Letra integral publicada na Revista da Armada nº 57, de Junho de 1976.
apenas três fi caram para a frequência do curso de arơ fi ces torpe-
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