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REVISTA DA ARMADA | 528


           NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                      69



          Um médico estranho…


          muito, muito estranho…




          (…) Passando Além das Ilhas Canárias que ao tempo não era   Contudo se o leitor anónimo quiser saber, a reação mais estra-
          certo serem d’El-Rei de Portugal ou de Castela, por quanto ambos   nha que Ɵ ve a estas histórias é a de total dúvida em relação ao
          andavam querendo as ditas ilhas para seu senhorio, fomos nave-  autor. Não se acredita que um simples médico tenha a capaci-
          gando em direção do meio dia e sempre à vista das costas de   dade para escrever sobre um tema diferente a cada mês. Diz-se,
          África (…)                                          claramente, que não pode ser. Afi rma-se sem vergonha:
                                In a Lenda de MarƟ m Regos, Pedro Canais, 2004  – Deves ter um sistema de copiar e colar de alguém…
                                                               Ora, sem palavras, prefi ro responder que eu também tenho difi -
            assava um médico por um corredor no Hospital das Forças   culdades em acreditar que se pode escrever assim e que “não”, não
         PArmadas, quando se cruzou com uma cara das suas memó-  conheço nenhuma fonte, aberta ou reservada, onde se pudesse ir
          rias. Era um paciente anƟ go seu, que possuía uma doença vascu-  buscar tanto texto, durante tantos anos… Afi rmo depois (triste por
          lar grave. Fora, entretanto, operado. Sobreviveu. O médico sau-  dentro), que realmente só um médico estranho, muito estranho, se
          dou-o com um sonoro “Viva. Então ainda pertence ao mundo dos   daria a tanto trabalho… sujeito a críƟ cas e suspeitas desta natureza…
          vivos…”. Os dois sorriram e abraça-
          ram-se. O episódio chocou outros
          médicos, de um outro ramo. Afi nal
          a frase, quase gritada, teria sido
          agressiva. Nada própria da relação
          entre o médico e o seu doente.
           Ora, o médico em questão nem
          respondeu. Ele sabe bem que um
          dos problemas principais do Hospi-
          tal das Forças Armadas é cultural.
          Os médicos refl etem naturalmente
          o ramo a que pertencem. Assim a
          cultura da Marinha, ainda que para
          os incautos pareça mais formal é
          na realidade muito mais próxima.
          Nos navios há pouca privacidade
          e muita, muita proximidade. Este
          facto, e uma natureza jocosa, mol-
          dou o caráter de muitos. Tirou-os
          de si próprios. Obriga, forçosa-
          mente, a reconhecer o outro…                                                                           Desenho de Paulo Guedes
          Nada, mesmo nada, do que se
          passou tem a ver com falta de res-
          peito. Trata-se apenas de reconhe-
          cer o sofrimento de um camarada, marinheiro, que se acompa-  Concluirá, fi nalmente, o leitor atento que, em relação à cultura
          nhou no sofrimento…                                 vigente, o Hospital das Forças Armadas está como descrito acima
           Outro médico, noutro tempo, teve um  fi lho muito, muito   para as Ilhas Canárias de antanho: entre o Rei de Portugal e o reino
          doente. Desse tempo, lembra os gracejos de muitos marinhei-  de Castela. A haver uma cultura predominante não é certamente
          ros que, regularmente, o contactavam. Essa experiência e muitas   próxima de um senƟ r universal e, digo-o claramente, muito há
          outras fazem parte de um coleƟ vo diİ cil de explicar a terceiros.   para fazer neste senƟ do. Tenho, contudo, uma certeza, amanhã
          Um senƟ mento que se chama, simplesmente, Marinha… Sinto   vou telefonar a alguns marinheiros académicos. Isto de escrever
          que a única razão para que estas Histórias durem há tanto tempo   de mote próprio é certamente estranho, muito estranho…
          é, pura e simplesmente, a existência daquele senƟ mento…   Talvez eles conheçam os escritos de um outro médico naval,
           A propósito destas Histórias, ainda, deparei com muitas aƟ tu-  desconhecido, talvez um cardiologista, muito, muito estranho,
          des diferentes, por parte dos outros ramos. A mais comum é a   que eu possa reproduzir aqui, quando a inspiração me faltar.
          de total desvalorização. Não seria de esperar outro tanto. Em   Assim, será mais fácil explicar a outros uma escrita mensal de
          primeiro lugar, os temas abordados interessam especialmente à   tantos anos: vou simplesmente dizer que copiei do cardiolo-
          Marinha e, na verdade, são escritos num código (numa cultura)   gista… e sorrir, sorrir e sorrir enquanto navego na direção do
          caracterísƟ co da maresia que nos atravessa. Não sei se a expe-  meio dia, como os verdadeiros homens do mar…
          riência, longa de anos, que consƟ tui esta aventura seria reprodu-
          ơ vel noutro ramo, noutro enquadramento.                                                           Doc


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