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17 O PATRIMÓNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO
Parte II
O REGIME DA CONVENÇÃO DE PARIS
PRINCÍPIOS E PREMISSAS decorrentes do direito internacional, incluindo a CNUDM.
A presente Convenção será interpretada e aplicada no
Como enunciámos no artigo anterior, foi a Convenção contexto e em conformidade com o direito internacional,
de Paris de 2001 que consagrou, em definitivo, a impor- incluindo a CNUDM” ; b) a salvaguarda, expressa no artigo
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tância matricial do estudo e regulação do património 4º, dos pressupostos desta Convenção (Paris) face às leis de
cultural subaquático (PCS), bem como a definição de um salvados (salvage laws) ou achados, evitando-se assim que
quadro jurídico internacional que pudesse responder a exista uma desconcertação dos princípios estabelecidos
todo o impacto que determinadas actividades de explo- nesta Convenção quanto ao PCS em detrimento de inter-
ração – muitas das quais legítimas – induzem, ainda que venções e operações enquadradas por regimes regulado-
de forma não intencional, sobre este património histórico. res de salvação e recuperação de salvados .
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Mas, sobretudo, a Convenção marcou um momento essen-
DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
cial na forma como se devem procurar sistemas cooperati-
vos e formas de colaboração entre todos os protagonistas O PRESSUPOSTO DOS ACORDOS.
e actores, sejam públicos ou privados, que se movem no O REGIME
âmbito do PCS, nos quais se incluem desde entidades de Numa matéria que envolve especiais características jurí-
cariz científico e organizações internacionais, até associa- dico-patrimoniais respeitantes ao foro soberano dos Esta-
ções profissionais, universidades e académicos, arqueólo- dos, todo o quadro regulador dos acordos bilaterais assume
gos, exploradores, armadores, mergulhadores e empresas particular importância, a qual, por variadas vezes, foi acen-
de exploração comercial e de salvage. tuada nos trabalhos de plenário que conduziram, em 2001,
Foi, também, na procura de uma definição sistémica e à aprovação da Convenção de Paris. O artigo 6º trata, em
objectiva o necessário do que é o PSC, que a Convenção especial, de acordos bilaterais e regionais ou outros acor-
marcou igualmente a sua importância histórica, bem como
na expressa estatuição de que a preservação in situ deste dos multilaterais, induzindo, mesmo, que os mesmos sejam
exarados entre Estados. De facto, estatui o seu nº 1 que: “Os
património será considerada uma opção prioritária antes Estados Partes são encorajados a celebrar acordos bilaterais
de sobre ele ser autorizada ou iniciada qualquer interven-
ção, princípio que define bem a importância histórica de e regionais, ou outros acordos multilaterais, ou a aprofundar
uma adequada política internacional de protecção, de rigor os acordos já existentes para fins de preservação do patrimó-
cultural e de preservação. nio cultural subaquático. Todos estes acordos deverão estar
Estabelece a alínea a), do nº 1, do artigo 1º, que “patrimó- em plena conformidade com a presente Convenção, não
nio cultural subaquático significa todos os vestígios da exis- lhe retirando o carácter universal. Os Estados poderão, no
tência do homem de carácter cultural, histórico ou arqueo- âmbito de tais acordos, adoptar regras e regulamentos que
lógico que se encontram parcial ou totalmente, periódica garantem melhor protecção do património cultural suba-
ou continuadamente, submersos, há, pelo menos, 100 quático do que os previstos na presente Convenção.”, acres-
anos, nomeadamente: i) sítios, estruturas, edifícios, arte- cendo o nº 2 que: “As Partes nos referidos acordos bilaterais,
factos e restos humanos, bem como o respectivo contexto regionais ou noutros acordos multilaterais podem convidar
arqueológico natural; ii) navios, aeronaves e outros veícu- os Estados com interesse legítimo, especialmente de natu-
los, ou parte deles, a respectiva carga ou outro conteúdo, reza cultural, histórica ou arqueológica, no património cultu-
bem como o respectivo contexto arqueológico e natural; e ral subaquático em questão a aderir a tais acordos.”
iii) artefactos de carácter pré-histórico.” Procurando a justificação conceptual que consta expressa
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Há, no quadro normativo da Convenção, um claro propó- nas disposições preambulares do texto da Convenção, e
sito em sublinhar a utilidade primordial de se promoverem todo o enquadramento das questões de propriedade, é
políticas de cooperação e de intervenção conjunta, quer ao útil, por exemplo, avaliar o tipo e a importância do patrimó-
nível da multilateralidade quer em âmbito bilateral, indí- nio que estava em causa no caso do Estado de Omã (navio
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cio claro que resultou da necessidade – a que já aludimos português naufragado , cuja problemática foi suscitada em
na Parte I desta matéria – de no processo dos trabalhos 2016), podendo até ser expectável que o quadro patrimo-
preparatórios se terem tentado encontrar pontos de con- nial cultural possa não se resumir ao navio em questão; ora,
vergência e mecanismos de equilíbrio entre as várias teses o estatuído no artigo 6º seria, obviamente, a via primordial
existentes. Tal propósito é claro e expresso nos nºs 2 e 4 do de aproximação ao Estado de Omã para que pudesse existir
artigo 2º, nos nºs 1 e 3 do artigo 6º, nos nºs 3 e 6 do artigo uma intervenção reforçada – em especial do ponto de vista
10º, bem como no artigo 19º. histórico-cultural e científico – naquele património subaquá-
A Convenção de Paris enuncia duas salvaguardas que têm tico. Isto, mesmo considerando que o Estado de Omã não
uma importância específica muito acentuada no âmbito ratificou a Convenção da UNESCO, mas considerando-se,
da sua própria aplicabilidade: a) a ressalva, no artigo 3º, de toda a maneira, que esta é uma via formal de relaciona-
da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar mento inter-Estados quando possam existir objectivos bila-
(CNUDM), estatuindo-se que “nada na presente Convenção terais a desenvolver em interesse comum, como claramente
afectará os direitos, a jurisdição e os deveres dos Estados parecia, e parece, ser o caso.