Page 31 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 567

          ESTÓRIAS                                                                                         74





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                                                  PARTE I – O PRIMEIRO CONTACTO










         Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes










            oncluí os meus estudos no Instituto Superior de Agronomia, ten-  parecia, de umas morteiradas amorosamente enviadas do outro
         Cdo defendido a tese em 1969. Logo a seguir fui incorporado na   lado da fronteira pelo PAIGC, com lembranças do Sékou Touré. Foi
          Marinha de Guerra Portuguesa, no 14º Curso de Formação de Ofi-  o meu baptismo de fogo…!
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          ciais da Reserva Naval, a fim de cumprir o serviço militar.  Interrompido o jantar, e chamado o Zebro  com os sinais de luzes
           Concluído o Curso, fui colocado no Estado-Maior da Armada. Po-  combinados, ficámos à espera…
          rém um dia, ao fim de seis meses, estava eu muito sossegadinho   E esperámos, esperámos, esperámos, e o Zebro nunca mais. E o
          no 2º andar do Terreiro do Paço a olhar para o Tejo, quando o meu   barulho afastava-se, afastava-se, afastava-se… em direcção ao mar.
          Comandante, ao tempo o Comte. Cruz Filipe, me chamou e disse:   E enquanto conjecturávamos sobre o que se poderia estar a pas-
          – “Bual, dados os bons e leais serviços prestados, e porque se apro-  sar, e púnhamos até já a hipótese de deserção do Fogueiro, come-
          xima o seu aniversário, a Marinha não quer deixar passar em branco   çamos a ouvir gritos e pedidos de socorro: era o pobre desgraça-
          a efeméride e, por isso, aqui tem!”.                do, ofegante (e apavorado, que aquilo eram águas de tubarões), a
           E estendeu-me a valiosa prenda, um lindo bilhete de avião da TAP   nado. Tinha caído do bote (!!!), embora com desculpa, que os “pa-
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          para o dia dos meus anos, de ida para Bissau (só ida), acompanhado   neiros ” do fundo estavam partidos e, com a “mareta ”, o dito bote
          da competente Ordem de Marcha, o todo embrulhado nas amáveis   dobrou e cuspiu-o.
          palavras de uma gentilíssima Portaria de Nomeação, onde eram te-  De modo que, para começo, não estava mal: ao fim de pouco mais
          cidos os Maiores encómios à minha capacidade de comando – o que   de trinta horas na Guiné, já tinha “levado na cabeça”, tinha tido um
          eu até estranhei, porque na altura ainda estava por demonstrar!  homem ao mar e perdido o Zebro! Por outro lado, e em contrapar-
           A primeira reação foi de recusa, a minha modéstia não me permi-  tida, que também se devem ver os lados bom das coisas, ao fim de
          tia aceitar tal distinção, nem eu me considerava merecedor de tão   pouco mais de trinta e uma horas na Guiné, já tinha passado incó-
          valiosa prenda…                                     lume por uma operação de fogo, feito um salvamento no Cacine e
           Mas as palavras insistentes e emocionadas do Sr. Comte. amolece-  recuperado uma embarcação à deriva…
          ram a minha resistência e fizeram-me aceitar o presente. E lá fui…  E assim estava estabelecido o primeiro contacto com a Bellatrix, a
           Cheguei a Bissau às duas e meia da tarde de um daqueles dias da   gloriosa P-363, autêntica lancha voadora com o seu jeito inconfun-
          época das chuvas em que o calor é abrasador e a humidade insu-  dível de marcar presença pelo fumo nos seus picos entusiasmados
          portável, daqueles dias em que, quando cheguei à porta do avião,   de 8,19 nós a favor da corrente!
          me senti empurrado para trás pelo peso do ar. À minha espera o   … CONTINUA
          meu amigo Zé Silva Dias , ao tempo Comte. da LFP Deneb e, interi-
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          namente, na LFP Bellatrix, que me estava destinada, que pegou em
          mim e me levou à Solmar, onde nos dessedentámos e comemos um           José Manuel Garcia da Costa Bual, 14.º CFORN
          bife. Daí para a sesta no hotel e, ao fim da tarde, para um magnífico   In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
          jantar em casa de um amigo dele, que amavelmente se dispôs a   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
          tentar ajudar a fazer-me passar o inesquecível dia de anos!
           E foi ainda meio ressacados que, no dia seguinte, logo bem cedo,
          embarcámos na Bellatrix para a viagem da passagem de comando.  Notas
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           E, como estreia, não foi mau: pelo canal de Melo até Cacine   Autor das três crónicas sob o título GUINÉ, NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS, publicadas na
          onde, a amável convite dos residentes, desembarcámos para jan-  rubrica ESTÓRIAS das RA 563, 564 e 565.
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          tar no aquartelamento do Exército.                    Bote de borracha com motor fora-de-borda usado pelos Fuzileiros.
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           Para jantar e para “levar na cabeça”, que ainda íamos na sopa,   3   aos pés.
          começaram a ouvir-se uns sons sui generis, novos para mim, mas   4   Ondulação dos rios.
          que logo me explicaram ser rebentamentos provenientes, ao que

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