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REVISTA DA ARMADA | 567
ESTÓRIAS 74
GUINÉ 1971-72
PARTE I – O PRIMEIRO CONTACTO
Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes
oncluí os meus estudos no Instituto Superior de Agronomia, ten- parecia, de umas morteiradas amorosamente enviadas do outro
Cdo defendido a tese em 1969. Logo a seguir fui incorporado na lado da fronteira pelo PAIGC, com lembranças do Sékou Touré. Foi
Marinha de Guerra Portuguesa, no 14º Curso de Formação de Ofi- o meu baptismo de fogo…!
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ciais da Reserva Naval, a fim de cumprir o serviço militar. Interrompido o jantar, e chamado o Zebro com os sinais de luzes
Concluído o Curso, fui colocado no Estado-Maior da Armada. Po- combinados, ficámos à espera…
rém um dia, ao fim de seis meses, estava eu muito sossegadinho E esperámos, esperámos, esperámos, e o Zebro nunca mais. E o
no 2º andar do Terreiro do Paço a olhar para o Tejo, quando o meu barulho afastava-se, afastava-se, afastava-se… em direcção ao mar.
Comandante, ao tempo o Comte. Cruz Filipe, me chamou e disse: E enquanto conjecturávamos sobre o que se poderia estar a pas-
– “Bual, dados os bons e leais serviços prestados, e porque se apro- sar, e púnhamos até já a hipótese de deserção do Fogueiro, come-
xima o seu aniversário, a Marinha não quer deixar passar em branco çamos a ouvir gritos e pedidos de socorro: era o pobre desgraça-
a efeméride e, por isso, aqui tem!”. do, ofegante (e apavorado, que aquilo eram águas de tubarões), a
E estendeu-me a valiosa prenda, um lindo bilhete de avião da TAP nado. Tinha caído do bote (!!!), embora com desculpa, que os “pa-
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para o dia dos meus anos, de ida para Bissau (só ida), acompanhado neiros ” do fundo estavam partidos e, com a “mareta ”, o dito bote
da competente Ordem de Marcha, o todo embrulhado nas amáveis dobrou e cuspiu-o.
palavras de uma gentilíssima Portaria de Nomeação, onde eram te- De modo que, para começo, não estava mal: ao fim de pouco mais
cidos os Maiores encómios à minha capacidade de comando – o que de trinta horas na Guiné, já tinha “levado na cabeça”, tinha tido um
eu até estranhei, porque na altura ainda estava por demonstrar! homem ao mar e perdido o Zebro! Por outro lado, e em contrapar-
A primeira reação foi de recusa, a minha modéstia não me permi- tida, que também se devem ver os lados bom das coisas, ao fim de
tia aceitar tal distinção, nem eu me considerava merecedor de tão pouco mais de trinta e uma horas na Guiné, já tinha passado incó-
valiosa prenda… lume por uma operação de fogo, feito um salvamento no Cacine e
Mas as palavras insistentes e emocionadas do Sr. Comte. amolece- recuperado uma embarcação à deriva…
ram a minha resistência e fizeram-me aceitar o presente. E lá fui… E assim estava estabelecido o primeiro contacto com a Bellatrix, a
Cheguei a Bissau às duas e meia da tarde de um daqueles dias da gloriosa P-363, autêntica lancha voadora com o seu jeito inconfun-
época das chuvas em que o calor é abrasador e a humidade insu- dível de marcar presença pelo fumo nos seus picos entusiasmados
portável, daqueles dias em que, quando cheguei à porta do avião, de 8,19 nós a favor da corrente!
me senti empurrado para trás pelo peso do ar. À minha espera o … CONTINUA
meu amigo Zé Silva Dias , ao tempo Comte. da LFP Deneb e, interi-
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namente, na LFP Bellatrix, que me estava destinada, que pegou em
mim e me levou à Solmar, onde nos dessedentámos e comemos um José Manuel Garcia da Costa Bual, 14.º CFORN
bife. Daí para a sesta no hotel e, ao fim da tarde, para um magnífico In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
jantar em casa de um amigo dele, que amavelmente se dispôs a N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
tentar ajudar a fazer-me passar o inesquecível dia de anos!
E foi ainda meio ressacados que, no dia seguinte, logo bem cedo,
embarcámos na Bellatrix para a viagem da passagem de comando. Notas
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E, como estreia, não foi mau: pelo canal de Melo até Cacine Autor das três crónicas sob o título GUINÉ, NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS, publicadas na
onde, a amável convite dos residentes, desembarcámos para jan- rubrica ESTÓRIAS das RA 563, 564 e 565.
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tar no aquartelamento do Exército. Bote de borracha com motor fora-de-borda usado pelos Fuzileiros.
Tábuas de madeira que se usam no fundo dos Zebros, para dar estabilidade e apoio
Para jantar e para “levar na cabeça”, que ainda íamos na sopa, 3 aos pés.
começaram a ouvir-se uns sons sui generis, novos para mim, mas 4 Ondulação dos rios.
que logo me explicaram ser rebentamentos provenientes, ao que
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