Page 32 - Revista da Armada
P. 32
REVISTA DA ARMADA | 568
SAÚDE PARA TODOS 92
SÍNDROME DO CADÁVER AMBULANTE
A síndrome do cadáver ambulante, ou como é chamada na medicina, síndrome de Cotard, é uma perturbação neuropsiquiátrica rara
cuja manifestação principal é a existência de delírios de negação. Mais concretamente, as pessoas afetadas verbalizam a ideia deli-
rante que já estão mortas (ou prestes a morrer), ou que partes do seu corpo não existem ou não funcionam. Muitas vezes recusam
alimentar-se e cuidar da sua higiene, comprometendo gravemente a sua saúde física e a sua vida social.
m 1880 o médico francês Jules Cotard (neurologista, psiquia- DIAGNÓSTICO
Etra e cirurgião militar) descreveu pela primeira vez um qua- O diagnóstico é clínico. Algumas queixas que os doentes com
dro clínico que acreditava corresponder a um novo subtipo de esta síndrome apresentam são:
depressão. Perante a Société Médico-Psychologique, em Paris, • Negar a presença ou funcionamento de certos órgãos;
apresentou de forma detalhada o caso da "Mademoiselle X", • Acreditar estar morto;
uma mulher que negou a existência de partes do seu corpo e • Sentir impossibilidade de morrer por acreditar já estar morto;
da sua necessidade de comer. A doente afirmava não ter cére- • Negar a sua existência;
bro, nervos, tórax, estômago ou intestinos; só lhe restava a pele • Negar haver um mundo externo;
e os ossos do corpo. Dizia não precisar de comer para viver pois • Negar a possibilidade de cura dos seus problemas, ou mesmo
não podia morrer de morte natural. Apesar das tentativas para a de existir alguma forma de minimizar o seu sofrimento;
tratar, com os conhecimentos médicos da altura, a "Mademoisel- • Alucinações olfativas: referir odor a “carne podre”, que fre-
le X" manteve os delírios e morreu de fome. Nos seus trabalhos quentemente atribuem ao seu corpo em decomposição e creem
subsequentes, o Dr. Cotard propôs que seria a conju- que todas as pessoas em seu redor também o sentem;
gação de um estado depressivo grave e de uma • Ideias de culpa, ruína e condenação (consideram-
ansiedade mórbida que poderiam levar ao -se inúteis, causadores da infelicidade da famí-
desenvolvimento de delírios estruturados lia, fonte de contaminação para quem lhes
de conteúdo hipocondríaco. está próximo, terem de pagar pelos seus
Nos anos seguintes a sociedade médi- pecados);
ca, perante mais casos sobreponíveis • Ansiedade;
aos da "Mademoiselle X", debateu- • Insensibilidade à dor;
-se se este quadro clínico deveria ser • Não reconhecerem a sua imagem
classificado como um subtipo de de- num espelho;
pressão, como um sintoma isolado, ou • Não se alimentarem ou higieniza-
mesmo como uma entidade clínica in- rem: acreditam não precisar, dado já
dependente. Em 1893 foi introduzida a estarem mortos;
ideia de abordar este quadro como uma • Tendência suicída.
síndrome (conjunto de sinais e sintomas
que surgem combinados, independente- TRATAMENTO
mente da sua etiologia), sendo ainda hoje essa Quando estes doentes chegam ao médico
a abordagem mais consensual. Como tal, esta per- habitualmente já estão numa fase avançada da do-
turbação não aparece referida nos manuais de classifica- ença, em que, além dos sintomas psiquiátricos, existem
ções diagnósticas, como é exemplo o manual CID-10 (Classifica- alterações noutros órgãos e sistemas (normalmente secundários
ção Internacional de Doenças) da Organização Mundial da Saúde, a falta de alimentação ou a traumas por acidentes que os pró-
atualmente em vigor. prios causaram, acreditando que não lhes provocaria dano, dado
já estarem mortos).
ETIOLOGIA Não existe atualmente cura para esta síndrome. A maioria des-
Não se conhece ainda a fisiopatologia da síndrome de Cotard. tes doentes carecem de internamento para reversão dos delírios
Esta é encontrada principalmente em pessoas diagnosticadas de negação, estabilização do quadro psiquiátrico de base (se pre-
com perturbação depressiva (cerca de 89% dos casos), pertur- sente), vigilância de autoagressões e alimentação cuidada.
bação afetiva bipolar e esquizofrenia. Há também relatos desta A terapêutica aplicada é individualizada pois depende da forma
síndrome em doentes com epilepsia, doença de Parkinson, es- de apresentação e sua gravidade. As terapêuticas a que os médi-
clerose múltipla, neurossífilis, enxaqueca, acidente vascular cere- cos psiquiatras mais recorrem são os medicamentos antidepres-
bral (AVC), tumor cerebral, trauma cerebral, atrofia cerebral, ou sivos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, ansiolíticos, bem
mesmo como efeito secundário de medicação ou drogas. como a psicoterapia e a eletroconvulsivoterapia.
EPIDEMIOLOGIA
Esta é uma perturbação rara, existindo menos de 1000 casos
descritos na literatura científica. Afeta igualmente ambos os se- Ana Cristina Pratas
xos e é mais frequente em adultos e idosos (apesar de existirem CTEN MN
casos descritos em adolescentes e crianças). www.facebook.com/participanosaudeparatodos
32 DEZEMBRO 2021