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REVISTA DA ARMADA | 568

         SAÚDE PARA TODOS                                                                                  92



          SÍNDROME DO CADÁVER AMBULANTE




          A síndrome do cadáver ambulante, ou como é chamada na medicina, síndrome de Cotard, é uma perturbação neuropsiquiátrica rara
          cuja manifestação principal é a existência de delírios de negação. Mais concretamente, as pessoas afetadas verbalizam a ideia deli-
          rante que já estão mortas (ou prestes a morrer), ou que partes do seu corpo não existem ou não funcionam. Muitas vezes recusam
          alimentar-se e cuidar da sua higiene, comprometendo gravemente a sua saúde física e a sua vida social.


            m 1880 o médico francês Jules Cotard (neurologista, psiquia-  DIAGNÓSTICO
         Etra e cirurgião militar) descreveu pela primeira vez um qua-  O diagnóstico é clínico. Algumas queixas que os doentes com
          dro clínico que acreditava corresponder a um novo subtipo de   esta síndrome apresentam são:
          depressão.  Perante  a  Société  Médico-Psychologique,  em  Paris,    • Negar a presença ou funcionamento de certos órgãos;
          apresentou  de forma detalhada  o caso da "Mademoiselle X",    • Acreditar estar morto;
          uma mulher que negou a existência de partes do seu corpo e    • Sentir impossibilidade de morrer por acreditar já estar morto;
          da sua necessidade de comer. A doente afirmava não ter cére-   • Negar a sua existência;
          bro, nervos, tórax, estômago ou intestinos; só lhe restava a pele    • Negar haver um mundo externo;
          e os ossos do corpo. Dizia não precisar de comer para viver pois    • Negar a possibilidade de cura dos seus problemas, ou mesmo
          não podia morrer de morte natural. Apesar das tentativas para a   de existir alguma forma de minimizar o seu sofrimento;
          tratar, com os conhecimentos médicos da altura, a "Mademoisel-   • Alucinações olfativas: referir odor a “carne podre”, que fre-
          le X" manteve os delírios e morreu de fome. Nos seus trabalhos   quentemente atribuem ao seu corpo em decomposição e creem
          subsequentes, o Dr. Cotard propôs que seria a conju-        que todas as pessoas em seu redor também o sentem;
          gação de um estado depressivo grave e de uma                     • Ideias de culpa, ruína e condenação (consideram-
          ansiedade  mórbida  que  poderiam  levar  ao                       -se inúteis, causadores da infelicidade da famí-
          desenvolvimento  de  delírios  estruturados                          lia, fonte de contaminação para quem lhes
          de conteúdo hipocondríaco.                                            está  próximo,  terem  de  pagar  pelos  seus
           Nos anos seguintes a sociedade médi-                                  pecados);
          ca,  perante  mais  casos  sobreponíveis                                 • Ansiedade;
          aos da "Mademoiselle  X",  debateu-                                      • Insensibilidade à dor;
          -se se este quadro clínico deveria ser                                   • Não reconhecerem a sua imagem
          classificado como um subtipo de de-                                     num espelho;
          pressão, como um sintoma isolado, ou                                     • Não se  alimentarem  ou  higieniza-
          mesmo como uma entidade clínica in-                                     rem:  acreditam  não  precisar,  dado  já
          dependente. Em 1893 foi introduzida a                                  estarem mortos;
          ideia de abordar este quadro como uma                                  • Tendência suicída.
          síndrome (conjunto de sinais e sintomas
          que  surgem combinados,  independente-                               TRATAMENTO
          mente da sua etiologia), sendo ainda hoje essa                    Quando  estes doentes chegam ao médico
          a abordagem mais consensual. Como tal, esta per-              habitualmente já estão numa fase avançada da do-
          turbação não aparece referida nos manuais de classifica-  ença, em que, além dos sintomas psiquiátricos, existem
          ções diagnósticas, como é exemplo o manual CID-10 (Classifica-  alterações noutros órgãos e sistemas (normalmente secundários
          ção Internacional de Doenças) da Organização Mundial da Saúde,   a falta de alimentação ou a traumas por acidentes que os pró-
          atualmente em vigor.                                prios causaram, acreditando que não lhes provocaria dano, dado
                                                              já estarem mortos).
           ETIOLOGIA                                           Não existe atualmente cura para esta síndrome. A maioria des-
           Não se conhece ainda a fisiopatologia da síndrome de Cotard.   tes doentes carecem de internamento para reversão dos delírios
          Esta  é  encontrada  principalmente  em  pessoas  diagnosticadas   de negação, estabilização do quadro psiquiátrico de base (se pre-
          com perturbação depressiva (cerca de 89% dos casos), pertur-  sente), vigilância de autoagressões e alimentação cuidada.
          bação afetiva bipolar e esquizofrenia. Há também relatos desta   A terapêutica aplicada é individualizada pois depende da forma
          síndrome em doentes com epilepsia, doença de Parkinson, es-  de apresentação e sua gravidade. As terapêuticas a que os médi-
          clerose múltipla, neurossífilis, enxaqueca, acidente vascular cere-  cos psiquiatras mais recorrem são os medicamentos antidepres-
          bral (AVC), tumor cerebral, trauma cerebral, atrofia cerebral, ou   sivos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, ansiolíticos, bem
          mesmo como efeito secundário de medicação ou drogas.  como a psicoterapia e a eletroconvulsivoterapia.

           EPIDEMIOLOGIA
           Esta é uma perturbação rara, existindo menos de 1000 casos
          descritos na literatura científica. Afeta igualmente ambos os se-                        Ana Cristina Pratas
          xos e é mais frequente em adultos e idosos (apesar de existirem                                CTEN MN
          casos descritos em adolescentes e crianças).                              www.facebook.com/participanosaudeparatodos


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