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REVISTA DA ARMADA | 568

          ESTÓRIAS                                                                                         75



          GUINÉ 1971-72



          PARTE II – O QUEIJINHO




















         Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes











            ertamente a vida a bordo da Bellatrix em cruzeiro não haveria de   jo…e, oh Céus!, excedia em tudo as minhas expectativas mais opti-
         Cfazer muita diferença da vida a bordo das outras lanchas: levan-  mistas: a massa escorrida, o aroma, o paladar!!! Os cheiros das ervas
          tar, fiscalizar, almoçar, fiscalizar outra vez, jantar e deitar!  e do cardo da serra, tudo isso me acudia à memória!!! Eu via-me lá,
           E para ajudar a passar o tempo, ler, escrever, conversar, ouvir músi-  pastor de um rebanho de ovelhas pastando num fim de tarde, o som
          ca, muita música, beber uns copos e fazer paciências.  bucólico dos badalos embalava-me, oh Cacheu onde é que estavas
           E esperar pelo dia seguinte…                       que já nem de ti me lembrava!
           Eu passava a maior parte do tempo entre a ponte e a minha câ-  Aí apareceu-me outra vez o Pecixe para levantar a mesa, e acor-
          mara, que o calor não convidava a estar ao ar livre. Aliás, na câmara,   dou-me do sonho. Ia-o matando…
          coabitava comigo um ratinho que era muito meu amigo. Eu dormia   E de novo cá em baixo, no real verde escuro-acastanhado do Ca-
          na cama de estibordo, por cima da qual havia uma prateleira com   cheu, guardei o queijo, antecipando já o almoço do amanhã. Até
          livros  a  que  eu,  pomposamente,  chamava  biblioteca  e,  todas  as   dormi melhor nessa noite, os sonhos que eu tive…
          noites, entre as duas e as três da manhã, o meu amigo vinha-me   Mas na manhã seguinte, quem me dera não ter acordado: o quei-
          cumprimentar, saltando da biblioteca para o chão e usando a minha   jo, o meu queijo, o meu rico queijinho, jazia no chão da câmara! O
          barriga como degrau. Lá ia à vida dele e só nunca percebi como é que   frigorífico não era muito aficionado de fazer frio: gelo, nem pensar
          voltava para casa, que nunca o consegui surpreender em tal trajecto.   e frio, talvez menos um cinco ou seis graus abaixo da temperatura
           Havia outros habitantes da câmara, mas com essas dava-me me-  exterior (que era p’raí de quarenta graus à sombra…), menos do que
          nos. Não eram nada amigáveis, parecia até que fugiam de mim e   isso, não!
          teimavam em fechar-se no seu domínio. Pois é, eram as baratas que,   Sobre as borrachas do dito, já falei quando contei das baratas!
          provavelmente para se defenderem do tal calor que nos oprimia a   De modo que, durante a noite, o meu rico queijinho, amanteigado
          todos, optaram por viver no frigorífico. Entravam e saíam à vontade   como só ele, com a temperatura morninha lá de dentro, foi escor-
                                                              rendo, escorrendo, primeiro pelo chão do próprio frigorífico, depois
          pelas borrachas, que na verdade não vedavam lá muito bem.  por debaixo das borrachas e para fora dele e, por fim, pelo chão da
           Lembro-me até uma vez em que recebi um daqueles miminhos por   câmara afora!...
          que todos ansiávamos que nos mandassem de Lisboa, e essa remes-  Quem se aproveitou da situação e se alambazou com o queijo foi
          sa era então particularmente gulosa; continha, entre outras iguarias,   o meu amigo, durante a sua saída nocturna. E eu, em contrapartida,
          um extraordinário queijo da serra, amanteigado, e ainda por cima e   entrei numa fase depressiva aguda que me durou pelo menos até ao
          feliz coincidência, chegou-me a dita encomenda em vésperas de sair   fim do cruzeiro!
          para um cruzeiro.
           Feliz, pensei que aquele cruzeiro até me ia custar menos a passar,
          com aquele queijinho para ir papando. Pressuroso, carreguei-o para     José Manuel Garcia da Costa Bual, 14.º CFORN
          a lancha e largámos de Bissau de madrugada. À noite, já no Cacheu,   In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
          para culminar um petisco do Pecixe e com um vinho que eu tinha
          prévia e cuidadosamente escolhido, abri cerimoniosamente o quei-  N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.


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