Page 43 - Revista da Armada
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imediato pela primeira vez, atracou ao cais. me perguntarem«se a Amáliacantava» e eu mandei-o
Amália Rodrigues, por essa altura, encontrava-se esclarecer que «a Amália não tinha vindo a bordo
também naquela capital, actuando, como ela sabe para cantar, mas somente para nos dar o prazer de
actuar, no Casino onde, todas as noites, recebia os compartilhar da nossa refeição, mas que me parecia
aplausos merecidos pela sua extraordinária capa- prudente aguardarem a hipótese da artista se resol-
cidade de sentir a cantar. ver a fazê-lo por sua amável iniciativa».
Alguns oficiais da fragata onde eu estava, convida- O cozinheiro, que durante toda a comissão nunca de-
ram a artista para vir jantar a bordo e Amália Rodri- ra provas de real valor na especialidade, para aquela
gues veio, com o prazer que teve a amabilidade de refeição revelou-se um «grande amante do fado»,
dizer e a ainda maior arte de nos convencer. porque a verdade é que tudo estava realmente de um
A refeição estava marcada para uma determinada sabor esmerado e dum requinte, que nos deixou a
hora mas, como era natural, a artista teve enorme todos embasbacados e eu, obrigado a ver as coisas
dificuldade em chegar a horas, pois os inúmeros com olhos de «dona de casa» (salvo seja, é claro)
admiradores, que a rodeavam e assediavam com per- indignava-me intimamente contra aquele mariola
guntas, conversas e palavras de simpatia e admira- que só sabia fazer pitéus para «grandes artistas da
ção, não queriam perder o encanto da sua presença. canção nacional».
A guarnição ficou naturalmente alvoroçada com o Muito no íntimo, ao ouvir os elogios que Amália fez
acontecimento e, por mais que se tentasse dissua- ao jantar, que sentimos irem mais além da simples
di-Ia de tal, partiu do princípio de que Amália vinha amabilidade cortês, pensava, de mim para mim, «dei-
a bordo por eles e para eles, se calhar, não andavam xa estar, meu maroto, que eu tas cantarei».
inteiramente longe da verdade, pois é"bem sabida a A certa altura, pelas dez horas da noite, hora de es-
simpatia que a artista vota ao alcaixe. tender macas, o criado solicitou-me ao ouvido «or-
E então não foi preciso dar ordens para que todos dens para as cobertas» .
estivessem fardados com o cuidado dos grandes Segui o meu palpite: mandei que esperassem pois
dias, barbeados, escrupulosamente limpos, navio tudo me dizia que Amália cantaria para eles.
arrumadíssimo com as cobertas como um brinquinho. Não me enganei. O «viola», que se sentava à minha
Dava gosto ver tudo e todos. esquerda, segredou-me que Amália lhe tinha. feito
Amália veio acompanhada de uma pequena comitiva , o sinal tradicional de quando desejava cantar.
onde estavam os seus acompanhadores e foi necessá- Num entremeado da conversa, falando-se de fados
riamente recebida com as deferências do costume. da artista, tive a opinião de que um dos fados que eu
mais gostava era precisamente o «Fado da Amália»
Em seguida todos nos encaminhámos para a Câmara
dos oficiais onde o jantar foi servido. onde nos versos se admite que haja alguém, por quem
Decorreu num ambiente de excelente disposição, re- ela se interessa, que precisamente declara «Amália,
pleto de saídas de real espírito, que todos os convi- não sei quem é». \
vas souberam ter para tão excepcional ocasião. O leitor se é amante do fado, sabe aquele a que me
refiro.
A mesa estava maravilhosamente decorada e eu digo
O jantar aproximava-se do fim e eu que já sabia que
isto porque," convém recordá-lo, não foi preciso a
Amália cantaria e que os instrumentos já estavam a
minha interferência para que todos dessem o melhor
bordo, virei-me para a Amália e disse-lhe mais ou
da sua capacidade.
menos isto:
Os criados e o despensei ro tinham-se saído bem e
não se esqueceram de lhe dar o ambiente castiço do Já sei que resolveu ter a amabilidade de cantar para
nós. Ninguém se atreveria a pedir-lhe tal porque de-
fado, onde sobressaía um doce, posto desde logo na
sejávamos sentisse bem que, embora a admiremos
mesa, em forma de guitarra, cuja forma tinha sido fei- \
como artista e a quei ramos sem pre ouvi r cantar, so-
ta, em ambiente de «trabalhos forçados voluntários»,
mente nos bastávamos com a presença e convívio da
pela esforçada equipa de fogueiros, naquela tarde,
pessoa, que não marca menos em simpatia, que a
para darem o seu contributo à recepção, que a artista,
artista. Se não se importa então, e já que vai cantar,
supersticiosa, não quis «partir».
sou eu quem lhe pede comece pela guarnição, que
No menú de Amália, lá estava a quadrazinha inevitá-
vive momentos trágicos de legítima impaciência,
vel, de sabor fadista, que rezava assim:
pelo que convém spssegá-Ios.
Seguimos para a coberta onde toda a guarnição es-
Deixai de chorar fadistas
perava.
Que o fado não pereceu,
A artista foi recebida com uma salva de palmas quen-
Voltou a haver quem o cante
te, sincera, convincente.
Desde que a Amália nasceu.
A marujada estava impecável. Parecia um orfeon:
cobertas decoradas de forma a dar ambiente típico
Não havia dúvida, a artista provocava uma corrente e castiço.
de inspirações e boas-vontades de todas as gamas. Fiquei orgulhoso, pois não há nada que mais orgulhe
Um elemento categorizado das cobertas pediu para quem dirige, de que não precisar de dizer nada para
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