Page 46 - Revista da Armada
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- Sr. Capelão, o Sr. Comandante de Batalhão quer - E agora? - arrisco eu, como tímida pergunta.
falar-lhe com urgência. - Agora, diz bem. Aí é que está o sarilho todo. O
Foi assim e ofegante que a ordenança me veio dar o rapaz é um miúdo, tem dezassete anos, ainda não
recado. Nunca o tinha visto apressado e não era acabou o ITE e eu não posso ignorar o que aconte-
exemplar a fazer continências. Pois nesse dia che- ceu, nem posso esconder o caso ao 1.° Comandante.
gou ao meu gabinete com aspecto de quem vinha a Que é que lhe hei-de fazer, não me diz? - E sem me
toque de caixa, pediu licença e fez contil"iência quase dar tempo para pensar: ~ Ó Capelão, fale com ele e
impecàvelmente. Não habituado a tais rigores mili- veja se há alguma ponta por onde se lhe possa pegar.
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tares para com a minha pessoa, ainda saboreava o Fiquei ali sentado não sei quanto tempo às voltas
sorriso feliz que o ritual regulamentar me provocara, com uma esferográfica e o cigarro sempre a fumegar.
quando o grumete despejou o recado completo. - Fale com ele, Capelão, tinha-me dito há instantes
- O que há, pá? - Que se passa? o Comandante de Batalhão. Sim, falo com ele, tenho
- Não sei , Sr. Capelão; o Sr. Comandante de mesmo de falar com ele, mas que lhe vou dizer? Da
Batalhão mandou-me vir ràpidamente e já procura conversa que vou ter com o Mouraria que poderei
o Sr. Capelão há um bom bocado. contar que lhe sirva de atenuante?
Apressei-me bastante menos que a ordenança. Ter- Saí do gabinete do meu amigo sem saber o que ha-
minei qualquer, niquice que tinha entre mãos e lá via de dizer ao trezentos e dezoito. O número, para
segui para o gabinete do Comandante de Batalhão. mim, não passava de uma abstracção, mas o Mou-
As minhas relações com o Comandante de Batalhão raria era um rapaz concreto que devia ter tido uma
eram as melhores, fundadas em sólidos laços de infânci·a muito infeliz. Alto e bem parecido, dava nas
amizade que perdura e, assim o espero e desejo, vistas onde quer que se encontrava. De boas falas,
perdurará muito para além das funções que o meu insinuava-se fàcilmente no ânimo de camaradas e
amigo exercia. superiores. Filho de uma grande cidade e prematu-
- Ainda bem que aparece, Capelão. Tenho um ramente amadurecido, o Mouraria lembrava-me um
problema que lhe quero passar imediatamente. - E produto sintético que atingiu proporções exagera-
sem me deixar respirar, continuou: das artificialmente. Já o conhecia muito bem e tinha
- Conhece o trezentos e dE3zoito, barra cinco? a veleidade de que era meu amigo. Tinha mesmo
- Não, o número não me diz nada. a certeza disso, especialmente depois do dia em que
- O Mouraria, homem. Não me diga que não conhece me garantiu com toda a solenidade: - O carro do
o Mouraria. Sr. Capelão não será roubado.
- Isso é outra conversa. Se não conheço o Mou- Como fazia com todos, também um dia o trezentos
raria. Ainda há dias desafiou o monitor para andar e dezoito passou pelo meu gabinete para uma longa
à pancada. e informal conversa. Dessa conversa que, por estra-
- Bem, também já cá se sabia e isso foi resolvido. O nho que pareça, não foi nada difícil, é que fiquei a
pior é' o que vai ouvir. Tem-no visto ultimamente? saber que era conhecido pelo Mouraria, que já há
- Recoste-se nessa cadei ra e prepare-se. - E o muito que não vivia com a mãe por quem tinha muito
Comandante de Batalhão, bem puxadas duas fuma- pouco respeito, que não conhecia o pai. Aos catorze
ças do inseparável cachimbo, continuou: - Não o anos, um senhor amigo da mãe arranjou-lhe emprego
tem visto nem o poderia ver ; o nosso homem, esse como mandarete num grande hotel de Lisboa, onde
raio do Mouraria, estava dado como desertor. Tam - trabalhava quando resolveu vi r para a Armada como
bém não sei o que faz a Companhia que só ontem vol untário.
lhe encontrou a falta. O diabo do rapaz estava O Mouraria falava com certa elegância e fluência ..
ausente há dez dias, imagine, e agora apresentou-se. Contava as coisas sem vaidade nem vergonha, natu-
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