Page 47 - Revista da Armada
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ralmente,  como  o fluir  da própria vida.  Poucas per-  venci-me de que lhe tinha captad? a confiança e nas
      guntas foi  necessário fazer nesta entrevista de apre-  au ias  era  interessado  e  animado.  O  ambiente  em
      sentação  que tinha com  todos os  grumetes. Só  que,   que agora vivia, o  pequeno  mundo  militar,  em  nada
      enquanto  falava,  não  olhava  muito  di reito  para  as   se assemelhava ao que até então conhecera. Muitas
      pessoas. Quando me disse que se viu na necessida-    facilidades tinham acabado e novos valores e interes-
      de de vir para a Marinha como voluntário, fiquei sem   ses começava:n  a entrar-lhe no espírito. O Mouraria,
      perceber nada.                                       quase  passado  o  grande  choque  inicial,  começava
       - Mas  foste  despedido  do  emprego?               a  compreender  que  sargentos  e  oficiais  eram  bem
       - Não,  senhor - continuou  imperturbável  o  Mou-  diferentes  dos  chefes  que  o  orientavam  no  hotel  e,
      raria.  - Dá-me  licença  que  fume?  - Com  certeza,   sobrêtudo,  os  camaradas  novos  com  quem  vivia
      se  gostas  dos  meus  não  faças  cerimón ia.       proporcionavam-lhe  uma  vida  mais  sadia  do  que  o
      Acendeu  o  cigarro  aproveitando  logo  a  primeira   ambiente  cosmopol ita  do  grande  hotel  da  grande
      fumaça,  sorriu  não  sei  de que maneira e prosseguiu   cidade onde tudo lhe era fácil.
       a sua história.  Sim,  digo  bem, história,  porque este   Agora, eu  devia falar outra vez  com  ele.  O caso  era
       rapaz de dezassete anos já tinha história.          embaraçoso, muito difícil até. Não via como se pode-
       - O meu grupo estava todo a ser preso. Então, antes   ria  evitar  um  pesado  castigo  e  qualquer  pena  que
      que também  eu  fosse  dentro,  resolvi  vir para a  Ma-  envolvesse  prisão  era  de  consequência  graves.  O
       rinha.                                              Mouraria  estava  a  habituar-se  à  vida  militar,  já  ia
      Outra  vez  sem  perceber,  interessado  já  na  história   suportando menos mal  as ordens recebidas e agora
      do Mouraria e  intrigado  com  aquela de o  grupo  es-  encontrava-se  naquela  situação.  Ia  perder  o  ITE;
      tar a ser preso, fiz mais perguntas.                 voltaria  para a vida civil;  reencontraria o seu grupo
       - Bem,  Sr.  Capelão,  isto  não  passa  daqui?  Então   e  possivelmente  recomeçava  as  proezas  interrom-
      eu  conto-lhe tudo.                                  pidas: Onde poderia chegar aquele rapaz?
      Foi  assim que fiquei  a saber que fazia parte de uma   Passei  a tarde a magicar e a solução não me surgia.
      quadrilha de ratos de automóveis, que um dia roubou   O  melhor,  pensei, é  não  dar mais voltas à  cabeça e
      um  carro em  Lisboa, foi  nele  para o  Porto, abando-  ouvir o que ele me contará.
      nou  lá  esse  carro,  roubou  outro  para  regressar  a   - Então,  Mouraria,  que  é  que  te  pas~ou  pela
      Lisboa e mu itas mais coisas.                        cabeça? !'Ião vês que estás em muito maus lençóis?
       - Mas fique o Sr. Capelão sabendo que nunca rou-    - Ó Sr.  Capelão,  não há nada a fazer.  A gente não
      bei  nada no  hotel  e  nunca faltei  ao  serviço.  -  Isto   pensa e  depois  não  vale  a  pena chorar. O  que está
      fo i-me dito em tom solene, como ponto de honra em   feito, está feito. Gostava de fi car na Marinha, mas ...
      que não se toca.  No meio daquela miséri a toda, esta   Após curtas  reticências, encolheu  os ombros,  acen-
      afirmação  peremptóri a  que  não  admitia  réplica  ou   deu  mais  um  cigarro  dos  meus,  tirou  a  carteira do
      dúvida,  soou-me  como  um  ponto  de  apoio,  como   bolso e sempre com os olhos a fugirem de mim,  es-
      algo  prometedor  de  que  nem  tudo  estava  perdido   tende-me uma fotografia.
      naquele  adolescente.  Fo i  nessa  entrevista  que  o   Mirei  e  remirei  a  fotografi a.  Era  uma mulher jovem
      Mouraria,  em  resposta  a  UrRa  pergunta  que  entre   e muito bonita. Quando lhe ia  restituir a fotografia é
      trocista  e  receoso  lhe  fiz, me  garantiu:  -  Sim,  sei   que perceb i tudo.
      que o  Sr.  Capelão  tem  um  carro  cinzento,  marca x   - Não me diga, Sr. Capelão, que uma mulher destas
      e  matrícula  y;  mas  pode  ficar  tranquilo  que  o  seu   não vale uns dias de prisão.
      carro não será roubado.
      Fiquei ami go do Mouraria. Falei com ele muitas mais
      vezes e também me fumou muitos mais cigarros. Con-                                        S. AUGUSTO
                                                                                                            9
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