Page 201 - Revista da Armada
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Heróis do Mar
ãO é a primeira vez que nesta Revista se cidades e aborrecer em terra. Mais tarde, cultivou o
dão a conhecer e se enaltecem marinheiros espirita em cursos que frequentou, aprendeu a viver
doutros países que se tornaram célebres. em sociedade, vindo a ocupar cargos importantes na
N Já o fizemos a respeito de Nelson (inglês), administração e governo do seu pais. Mas, logo que
Barroso (brasileiro), Hedais du Bocage (francês) e va- voltava ao mar, o antigo grumete reaparecia, olhando
mos fazê-lo hoje a respeito do almirante Miguel Grau, com carinho as ondas, desafiando com audácia a tem-
baseando-nos em elementos fornecidos, gentilmen- pestade, agradecendo à Providência o vento que en-
te, pelo embaixador do Peru em Portugal, D. Carlos chia as velas do seu navio e o fazia navegar. Os mais
Gamarra Vargas. velhos marinheiros da sua pátria amavam-no, respei-
ta.vam-no e orgulhavam-se dele. Ainda não tinha 20
anos, já era notado pela sua intrepidez, pela bondade
e doçura do seu carácter varonil, por essa distinção
peculiar aos homens superiores, misto de força e
grandeza que os distingue da multidão. Alternada-
mente na Marinha de Guerra e na Mercante, havia
adquirido todos os ensinamentos de que mais tarde
viria a necessitar para deixar assinalada a sua vida de
mar. Conhecia todas as linguagens que se falavam
nos mares, as correntes e os ventos, as costas, as
ilhas e os barcos que navegavamn no Atlântico e no Pa-
cifico, do Peru ao mar da China. Educado na escola do
trabalho e da adversidade, seu corpo e seu espirita
estavam temperados para a luta, com a resistência e
a têmpera do aço.
Mas, até aqui a sua vida é apenas a de um mari-
nheiro valente, modesto e bondoso. Vai chegar o mo-
mento da sua sublime transformação. O valor elevar-
-se-á até ao heroismo, a ciência obedecerá ao seu gé-
nio, a bondade transformar-se-á na magnanidade do
herói e, mais uma vez, alcançará as palmas do triunfa-
dor, aparecendo subitamente entre os navios inimi-
gos e desaparecendo, como um sombra, depois de de-
sempenhada a sua missão.
Em 1872, Miguel Grau era capitão-de-mar-e-guer-
ra e comandante do navio monitor aHuáscafll, dois
OalmuanfeMigual Grau, helÓidoPeru.
nomes que passariam juntos à história do Peru e das
Miguel Grau nasceu à beira-mar, em Piura, aprazí- marinhas de todo o mundo.
vel oásis num areal calcinado e sedento. Ao abrir os Estava fundeado em CaUao quando os ambiciosos
olhos podia contemplar um dos mais belos espectá- irmãos Gutiérrez derrubaram o presidente Balta e
culos da natureza - as imensidões do oceano Pacifi- perseguiram D. Manuel Pardo, caudilho do Partido Ci-
co, de um lado, e as colossais montanhas dos Andes, vil e triunfador em recentes eleições. Grau e a esqua-
do outro. Nestas, picos eternamente cobertos de dra peruana tornam-se o escudo protector deste, re-
neve penetrando nas nuvens, vulcões em pennanen- jeitando todas as ameaças, saindo para o mar, e pro-
te actividade e caudais de luz que, caindo como ben- clamando a sua vontade de resistir. Esta atitude re-
ções do Sol, alimentam selvas e fazem brotar flores, solve a situação: o despótico governo dos Gutiérrez
dando vida à natureza que parece cantar hinos ao cai e Pardo assume o poder.
Criador. Depois de pennanecer alguns anos no comando
Com 10 anos apenas, já cruzava os mares, familia- do «Huáscaf!I, Grau passa a desempenhar o cargo de
rizando-se com os seus mistérios, as suas tempesta- comandante-geral da Marinha e, mais tarde, o de de-
des e seus dias serenos. Grumete aventureiro, fez putado ao Congresso. Estava então longe de imagi-
sete anos de vida no mar, subindo aos mastros para nar que uma carreira naval que parecia começar a de-
manobrar as velas debaixo de temporal ou distrain- clinar, iria conduzi-lo ainda aos mais fabulosos domí-
do-se, nas horas de ócio, a ver os peixes seguindo a nios da história.
esteira do navio, em tempo calmo. Aos 17 anos era já Tinha 44 anos de idade, Havia navegado em todos
um autêntico lobo-da-mar, sentindo-se sufocar nas os mares, comandado os melhores navios e participa-
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