Page 304 - Revista da Armada
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HISTORIAS DE MARINHEIROS

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               Quando  eu  embarquei,  como  vezes,  quando  no  Douro,  ficava-se   Nunca a bordo exprimiu  um de·
           guarda-marinha,  na  canhoneira  no  convés,  olhando  fixamente  os  sejo, ou formulou um protesto. Dócil,
           .. Mandovi»,  fundeada  no  Douro, já  verdes da margem sul.  Ensimesma·  jamais questionou  com  os camara·
           ele estava a bordo. Era grumete, ain-  do, numa quietude silenciosa, guaro  das ou refilou com os sargentos. De
           da,  e  a  marinhagem  tratava-o  pelo  dava  para  si  os  pensamentos  que  caderneta limpa, era da 1.- classe de
            10001 .  Naquele  tempo,  a  numera-  decerto lhe  povoavam  o  cérebro,  e  comportamento.
           ção  das  praças  não  ia  além  dos  calava,  bem  'lo  fundo,  os  anseios   Por concessão do imediato, não
           5000. Ao distingui-lo, assim, com um  que naturalmente lhe palpitavam no   fazia  serviço de escala.  Nem de es·
            número tão alto, houve decerto a in-  coração.                      cala, nem qualquer outro. Mas os ca·
            tenção de não o confundir com os QU-
            Iras.  Por concessão espec1al,  anda-
            va sempre de farda branca, mesmo
            no Inverno, quando os camaradas já
            envergavam o uniforme azul.
               Tinha uns olhinhos vermelhos, a
            denunciar, na aparência, que se me·
            tia nos copos. Mas pura ilusão: nada
            de  vinho nem bebidas brancas. Era
            abstémio. As narinas é que lhe palpi-
            tavam sempre num ritmo acelerado.
            Dava a ilusão,  na respiração apres-
            sada,  que  acabava  de  chegar  de
            uma  longa  corrida.  Mas era  assim,
            por natureza. Já ninguém estranha-
            va.
               Com  bom  tempo, nas  horas  de
            folga,  brincava  com  os  camaradas
            no convés, dando corridinhas curtas,
            de um para o outro lado. Por vezes,
            antes de arrancar, batia uma panca·
            da  seca  com  os pés.  Era  um  tique
            nervoso.
               Não gostava do mar. Quando o
            navio saía a barra, subia para o rufo
            da  máquina,  amornado  pela  calor
            que vinha debaixo, e aí se  estendia
            ao comprido,  como morto, de olhos
            fechados,  num  enjoo  total.  Não  se
            chegando  à  borda,  ali  mesmo pru·
            mava,  acumulando  montículos  de
            comida mal  digerida junto da boqui·
            nha entreaberta. Mas logo que o na·
            via entrava a barra, renascia para a
            vida. Saltava do rufo e ia ligeiro para
            um canto da cozinha, seu poiso habi·
            tual, quando o navio fundeado.
               Tinha um  amigo em  cada mem·
            bro da guarnição. Mas as suas ami·
            zades  particulares  iam para o  cozi·
            nheiro. Este lhe dava os pitéus mais
            do seu agrado. Entendiam·se bem ...
               Nunca ia de licença. Era asilante.
            Não  se lhe conhecia namorada. Às

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