Page 353 - Revista da Armada
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AQUILO QUE A GENTE NÃO ESQUECE  (12)



         Bajuda(*) feiticeira







            Em fins de 71  cheguei à Guiné para uma comissâo
         de selViço. Calor sufocante e um pouco de poeira, era a
         tónica de boas·vindas a todo e qualquer recém-chegado.
         Quem era eu para ser excepção? E desde Bissalanca,
         assim se chamava o aeroporto, até "às [NAS (Instalações
         Navais de Bissau), diversas vezes puxei do lenço para
         limpar o suor que gotejava da fronte. Já conhecia caras
         e ambientes, pois no Verão anterior, lá  estivera com  o
         Conjunto «Os Náuticos», mitigando um pouco, ao som
         de boa música, as agruras daqueles que por lá «pena-
         vam". A estadia com «Os Náuticos" não medeu, noen-
         tanto, o ensejo de me inteirar de tudo, nem muito menos
         a oportunidade de me «enfarinhar» no léxico local.
            Aos poucos, a coisa foi indo. Mas, não tão fácil como
         poderia parecer. Quem quisesse penetrar no âmago dos
         costumes e tradições da gente da Guiné tinha de estudar
         cuidadosa e afincadamente as divergências de raças e
         etnias, bem numerosas, e estranhas elas eram.
            Manjacos, papéis, biafadas, fulas, mandingas, felu-
         pes, futa-fulas etantas outras, constituíam um painel rico   "Bajudas» cleBissau.
         e variado de mentalidades, de experiência, de afirmação
         de vida daquele povo. Terra e gente, se bem que peque-  Convenci-me da veracidade do ditado:  «de poeta e
         na  uma e pouco  numerosa outra, formavam  na  Guiné   de louco, todos nós temos um pouco».
         uma policromia tão maravilhosa, como será raro encon-  A coisa ficaria por aqui se um assalariado, assim se
         trar em qualquer outra parte do globo. Foi nessa raridade   designavam os elementos civis que serviam na Marinha
         que passei dois anos.                               sem pertencerem aos quadros do seu pessoal, se um as-
          - E se me dei bem! E não s6. Quase constantemente   salariado, dizia, não me interpelasse futuramente nestes
         me cruzo com militares que por lá passaram. Há sempre   termos:
         o esboço de um desejo incontida de saber, de perguntar   - Sor Caperão, quem lhe disse que Bissau ser baju-
         como irá aquilo por lá. Tenho mesmo a impressão de que   da?
         se as bolsas e as condições o permitissem muitos apro-  Fiquei um pouco encavacado e, de súbito, não soube
         veitariam para dar um salto até lá. Eu seria um deles.   bem que responder.  Aliás, o Alexandre, tal  era o nome
            Não o podendo, por ora, vou-me contentando em re-  do  assalariado  a  quem  alguns  teimavam  em  chamar
         cordar mil e uma coisa que por lá se foi passando.   «mainato», passava todos os dias pelo meu gabinete de
            Um  dia, era eu  donzel  naquelas  paragens, dei por   trabalho a fim de lhe dar uma limpeza e fazer um ou outro
         mim batendo com a mão no tampo da secretária, motiva-  serviço de ordenança.
         do pela métrica de uns versos que se pretendia fossem   Podia, pois, dar-lhe uma resposta num dos dias se-
         a letra de uma marcha para Bissau. Avizinhava-se festa   guintes.
         de arromba. Era preciso uma marcha e alguém me bate    Mas, o bom do rapaz  não descansou enquanto não
         à porta para que fosse eu o seu autor. E, num daqueles   obteve uma resposta satisfatória. Ele ouvira a marcha de
         momentos em que a mUf ~ é pródiga, a veia poética fluiu   Bissau. Também já a cantava direitinha. Mas lá compre-
         e a letra apareceu. Começava assim:                ender porque é que o «Sor Caperão» chamava bajuda
                                                            feiticeira à  capital da sua  terra, isso não lhe entrava lá
               Bissau, cidade, que linda que ela é!
               Morena, africana, capital da Guiné.          dentro.
               Bissau, que encanto, em noites de luar!         Por isso, passados poucos minutos, voltou a insistir:
                                                               - Então, Bissau, bajuda, hem!?
               Bajuda feiticeira a crescer junto do mar.
                                                               -  Olha, Alexandre, eu  chamei bajuda a Bissau por
            Gostei da letra, trauteei-lhe uma música e bateu cer-  ser uma maneira engraçada de dizer que Bissau é boni-
         to.  Depois, foi a festa. A marcha pegou e recebi felicita-  ta! Sabes, os poetas têm a mania de querer dar vida às
         ções.                                              coisas.
                                                               - Ai, Sor Caperão, gente não precisa dar vida a baju-
            (*)  Bajuda é o lermo com que na Guiné se designa a rapariga, a   da. Bajudaé que dar vida à gente. Bajuda, bajudinha ver-
         menina.                                            dadeira, ter mais vida que Bissau.


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