Page 356 - Revista da Armada
P. 356

Paixões de diferente expoente






                   bem sucedida missão do navio-escola «Sagres» no   Apesar disso, duranle algum tempo, os samurais con·
                   festival  de  Ósaca  que  focámos  nesta  Revista('),   sideraram a arma de fogo como «arrpa covardell, incapaz
            A continua a rnOlivar li fascinação nipónica do artisla   de superar a espada secula r, e seriam necessários cerca de
            fotógrafo  Eduardo Tomé,  que acompanhou  o  navio ao   30 anos para que um senhor da guerra -  Nobunaga -
            Japú{) cm ~crviçu tle rcpllrlólgcm p"ra () " Di;irin de Noti-  organizasse as suas modestas forças e tirasse partido des·
            cias,.,  Com  a colaboração da  Embaixada desse  pais em   sas armas.
             Lisbou. ele expôs na Fundação Calousle Gulbenkian par-  Ora, o senhor de Tanegashima ordenou ao seu alfage-
            te das suas belas fotografias com uma mostra retrospecti-  me. que aprendesse com os portugueses a fazer as suas ar-
            va da arquitectura japonesa. e no Teatro de S. Carlos re-  mas, e eSle. para as examinar, levou consIgo ao junco doS'
            petiu-a.  subordinando-a  ao  sugestivo  tema  .. Wakasa  e   .. nambanll  (bárbaros vindos  do  Sul)  sua  fi lha  Wakasa,
             Madame Buttcrfly -  Fernão Mendes Pinto e  F. B.  Pin-  moça de rara beleza, declarando: Se me ensinardes a fllll-
             kerton, duas paixões de diferente expoente».       dir (I  vossa  Hteppô»,  dou-vos em recompensa esta minha
                É sobre esta última que me vou debruçar numa opini-  humilde filha.  Sentindo abalar-se-Ihe o coração,  um dos
             liva e talvez prctenciosa apreciação.              portugueses ensinou-o  a  fabricá-Ia,  mas  levou  a  jovem
                Reportando-me ao que também foi dito nesta Revis-  consigo quando o navio abalou dali.
             tan a  propósito do primeiro encontro dos portugueses   Ao  fim  de  dias e  meses de tentativas  panl  f .. zer es-
             com o Japão, na ilhota de Tanega (Tancgashima) há dois   pingardas o  alfageme  não conseguiu rematá-Ias do lado
             aspectos que os japoneses não esqueceram: os transcen-  fechado de maneira a fazerem fogo, arrependendo-se de
             dentes efeitos que concorreram para modificar o curso da   ter dado a sua filha.
             sua história com a introdução das armas de fogo e a lenda   Esta, longe, no mar, já mãe de um fi lho, também sen-
             dos  amores de  Wakasa,  que  jamais se  apagou  naquela   tiu  profunda saudade da família e  da sua ilha e, poetisa
             ilha.                                              como todas as japone.~as jovens, escrevellum poema triste,
                Escrevendo .. Teppã Kh. (Crónica da Espingarda), um   mostrlll/tlo-o  (/O  sell  .H' lIhor  e  marido,  q//e  teve  delt,
             autor japonês dessa época dizia: Traziam lima coisa direi-  gml/de dó.
             ta por fora e oca,  com {fuase  11m  metro de comprimento,   No ano seguinte voltaram ambos a Tanegashima, e o
             feita de substância dura,  A passagem il/terior ia de 11m ex-  .. nambanll português ensinou ao sogro o segredo que este
             tremo  ao  o/tiro,  embora  fechada  nllm  deles,  com  uma   não aprendera, pelo que, no espaço de um ano, foi  capaz
             abertllra para  jf/(rodução do fogo.  Tal coisa,  porém, não   de produzir 10 espingardas- nola-se que Fernão Mendes
             tem Jemelhança com qualq/ler mura qlle eu conheça,  Para   Pinto, na sua «Peregrinação», diz que em cinco meses e
             a llIi1izar,  enche-Je com pólvora e bolinhas de  chumbo.   meio que esteve naquela ilha se produziram maisde600 ...
             Colocando 11m peqlleno alvo branco nllma el/costa,  segura-  Com essas armas (10 ou 600), o senhor da ilha ades-
             -se /Iq//ilo ('01/1  /I,~ IIIl/O.\·. f'lIdireita-.H' (} corpo, feclw-w 11/1/   troll os sells vassalos ,/O liSO da espil/garda, começando as-
             olho e leva-se o fogo àquela abertura.  Elllão as esferas de   sim a introdução de armas de fogo no Japão - como ter-
             chllmbo acertam  rigorosamellle 110  alvo.  Contudo,  a ex-  mina a .. Crónica da Espingarda ....
             plmão é como um raio, fazelldo o ",ido do trovão.     Nunca fui  a Tanegashima, mas sei que, embora essa
                Devo acrescentar que os japoneses já conheciam  as   crónica não conte o reSIO da história, o romance dos amo-
             «bocas de fogo» dos chineses e não esqueciam as «bombas   res de Wakasa ainda hoje é ali celebrado-tendo sidoseu
             de  fogo»  empregadas pelos  mongQi~ em duas tentativas   amante ... Fernão Mendes Pinto!
             de invasão do arquipélago, no tempo dos seus avós. Esta-  Segundo Marlins Janeira('), o  .. namban ...  de Wakasa
             vam,  porém,  pela  primeira  vez,  perante armas de  fogo   vollaria para o mare levaria o filho consigo. A mãe, como
             portáteis - os nossos arc .. buzes de fechos de serpentina,   qualquer mulher de homem do mar, Jelllill o coração des-
             porventura menos certeiros do que as setas dos seus ar-  pedaçado ao despedir-se  do homem e do filho.  Do cimo
             cheiros, todavia suficientemente leves e mais mortíferos.   de lima falésia ficou a acenar-lhes até o borco se sumir fiO
                Técnica e psicologicamente,  lois armas surgiram I/llm   horizollle, passando a COlltar os dias que faltavam para o
             exacto momel/lO hi.stórico para o ltlpão(').  O  colapso da   regreJso do filho  querido e do homem amado.  TodoJ os
             autoridade central  tinha  levado o  país à era das guerras   ditls subia a essa escarpa sobre o mar, procurando o vlllto
             civis e. com a sua divisão de feudos antagónicos, a .. tane-  de lima vela.  Até que um dia viii sllrgir lima o"de brilhava
             g,lshima teppô ... permitiu facilitara recrUlamento de com-  a cruz de CrülO, e, tomo se emocionou que perdell o equilí-
             batentes,  pois a  utilização de milhares de archeiros que   brio e caiu ao mar, morrendo de alegria, feliz.
             apoiavam  os  guerreiros  profissionais  (samurais)  exigia   Deste modo trágico acaboll O primeiro amor dllma ja-
             demorado treino no manejo do arco. Embora dispendio-  pOl/esa por um porluglib.
             sa,  <I  .. teppô»  podia  ser  utilizada  por qualquer aldeão_   Quase um século dc:::pois de terem ali  chegado, os por-
             com menos treino.                                   tugueses foram expulsos do Japão, e muitos deles levaram
                                                                 para Macau suas mulheres japonesas e os filhos, mas dei-

                (') N ." 160··Jul/t'If/J dt'H5.
                ( ') N." /-ISIJ(IIIt'lro dt84.
                (' )s. R. Tum/mil . • Tire Swmrra; -A Mm/(Jry f(iS/(JfY _ (/977).   (') «Figurasdt  SUêl1cio ~ (1981).

             30
   351   352   353   354   355   356   357   358   359   360   361