Page 189 - Revista da Armada
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como portuense, de um chauvi- navegava descuidado!... Lembro- número e da resposta indicada,
nismo por tudo que dizia respeito -me que, tantas vezes, em pequeno, nada mais se ouvia. O vento gemia
ao Porto, o que por vezes desper- me tinham ensinado a rezar por nas enxárcias e o hélice continuava
tava largas discussões amigáveis aqueles que andavam sobre as o seu tom plangente e regular ...
na praça de armas. águas do mar, e, no meu intimo, a Todos respondiam, e quando o
Eu tinha saldo de quarto à meia- minha prece murmurada em silén- escrevente leu o último nome que
-noite e recolhera às delicias do cio ia até ao infeliz que essa hora se achava escriturado, perguntava-
meu acanhado beliche, aquele estaria talvez lutando com a -se - umas quem calra ao mar?u
incrivel alojamento dos guardas- mortel ... - Repita a chamada - disse o
-marinhas da IIDouroJJ que tantas A bordo reinava um silêncio imediato.
gerações conheceram. Fazia frio, terrivel, apenas interrompido pelo E de novo o resultado foi idén-
como disse, e a antepara que sepa- cadenciado bater do hélice nas suas tico: todos responderam.
rava o alojamento da casa da voltas vagarosas - o mais devagar - Deixe cá ver o alardo.
máquina dava, naquela noite, um possível - e pejo ruído seco do - Então? - perguntou o co-
agradável calor que convidava a vapor em excesso saindo pela vál- mandante.
pegar no sono. Quer dizer que cinco vula de descarga. - Responderam todos.
minutos depois dormia a sono Sentia-se já o bater compassado Mas o tenente Azeredo virando
solto, embalado pela pancada regu- dos remos na água: era o escaler por acaso a última folha do alardo
lar do hélice que levantava na que regressava a bordo. Virá? Não leu, à luz de uma lanterna que o
esteira do navio a linda luz fosfores- virá? Horrlvel incerteza. O siléncio cabo de quarto segurava co mão
cente peculiar às noites escuras dos era tétrico, ouvia-se bater os cora- trémula, e disse:
trópicos. ções daquela centena de homens. - Há mais um nome.
Súbito, no siléncio da noite, a A máquina parou de todo. Pejo - Ah! É verdade: 2. O-grumete
sinistra voz se ouviu vinda da proa: porta-voz comunicou-se para o es- 245.
- Homem ao mar! ... caler. A resposta foi terrivel: Fez-se um grande siléncio.
Num navio relativamente - Não se encontrou! - 2. O-grumete 245, João Gon-
pequeno esta voz chega a todos os O silêncio ainda se tornou çalves.
compartimentos e num abrir e maior ... Novo silêncio.
fechar de olhos, em que fosse Atracou o escaler. João Pestana - O moço das luzes - disse
necessário vozes de comando ou saltou, dando parte dos esforços uma voz na forma.
chamadas, parou a máquina, o empregados para se encontrar o Era ele, efectivamente, o des-
navio guinou para estibordo, desgraçado e, quando terminou o graçado que caim ao mar e que ten-
deitaram-se ao mar as bóias de sal- seu curto relatório e se dirigia à do vindo para bordo no própria dia
vação e o escaler de socorro, guar- talha de ré, uma grande lágrima da partida do navio de Lisboa fora
necido pela gente de quarto com o escorregou-lhe pela face curtida pe- o seu nome escriturado no alto de
cabo marinheiro João Pestana ao Jo vento e maresia, descendo pelas uma nova folha do alardo. Era o
leme, ia já largo do navio. suas negras e talhadas sulças. desgraçado que já não podia res-
Toda a guarnição estava em Outras praças choravam. A noite ponder à chamada e que descia a
cima. Eu não sei como me vesti, pareceu que se tornava mais essa hora, vagarosamente, os abis-
nem o que vesti, mas em segundos negra! ... mos do oceano, naquela tristissima
subi à tolda. A bóia luminosa da Deu-se ordem para se içar o noite, ao mar da Serra da Leoa.
popa espalhava a sua luz mortiça escaler e a bóia de salvação que - Mande destroçar - disse o
pelo mar em roda oscilando à fraca viera a reboque e apitou-se à comandante. - Leme a bombordo;
ondulação da mareta. O escaler mostra geral. A guarnição formou ó do leme, anda para o caminho.
seguia e com ele as esperanças de imediatamente, segundo a Orde- Barca na água. Boa noite, sr.
se poder apanhar o desgraçado que nança. Reinava o mais absoluto si· Sarmento.
caira ao mar e que ainda ninguém lêncio. Os oficiais eram poucos; E desceu à cámara. Nessa noi-
sabia quem fosse. além do imediato, o tenente Azere- te ninguém se deitou mais ..
Longos instantes me pareceram do e Vasconcelos, os tenentes Sar- No dia seguinte soube-se que o
séculos. O escaler sem voltar. O mento e Gomes de Sousa, o dr. pobre moço das luzes fora acordado
comandante, em cima da ponte, Ferreira, o engenheiro Almeida, o para espevitar o farol de estibordo,
mandou andar devagar para o farol guarda-marinha Miranda, o Miran- que era colocado a vante da casi-
da pequena bitácula do escaler, que dinha, que tão cedo nos foi levado, nha, e, ou por efeito do sono, ou por
fora acesa, e para a bóia luminosa e eu. efeito do balanço, se desiquilibra-
cuja luz se via ir extinguindo-se O imediato Azeredo, com ra e caira ao mar ...
pouco a pouco, como a nossa aquele seu ar sério e decisivo, man- E ali ficou, nessa linda sepul-
esperançai ... dou buscar o alardo, e o escrevente, tura dos marinheiros, livre do con-
E o escaler sem voltar! ... segundo o regulamento, começou tacto da terra impura e sobre a qual
Eu, encostado ao portaló, tran- a chamada pelos oficiais, estado· não é passiveI colocar-se a cruz
sido de frio e de dor, pela primeira -menor e praças. Ouviam-se em redentora - spes única -, nem
vez, na minha vida de mar, com- todos os tons as palavras I/ProntoJ) mãos piedosas e amantes podem ir
preendia a grandeza do elemento ou IIPresente». E a chamada conti- cobrir-lhe de flores aquele local. O
sobre o qual havia tanto tempo nuava. Além de um nome, de um oceano abriu por instante os seus
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