Page 234 - Revista da Armada
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ofício em que pudesse ser útil. Respondeu Sindbad, com os sentidos alerta, Sindbad olhou em redor, e
sem dar-se a conhecer, que não era artífice, mas tam- reconheceu ter sido levado a uma espécie de outeiro
bém mercador, e que os corsários lhe tinham tirado bastante comprida e largo, circundado de rochas,
quanto possuia. ((Não sabeis, ao menos, atirar com arco limpo de árvores, e literalmente coberto de ossadas
e flecha?" - insistiu o patrão. Esclareceu Sindbad que e dentes de elefantes. Numa reflexão imediata, Sind-
fora o seu desporto favorito, na mocidade, e que não bad endereçou àqueles enormes animais, a sua grande
se esquecera dele. admiração pelo instinto que os impelia a demarcarem
O mercador deu-lhe então um arco e aljava guar- o local do seu passamento desta vida, o seu cemité-
necida de aceradas e bem equilibradas flechas, e, rio, e - o que o deixava verdadeiramente atónito -
fazendo-o montar consigo no dorso dum elefante, a autêntica mensagem da manada, senão da espécie,
deslocaram-se à floresta, afastada da cidade umas para que Sindbad se inteirasse dessa jazida desapro-
horas de caminho. A floresta era vastíssima, tanto veitada dos mortos, do que ele, com a sua perícia de
quanto a vista podia abranger, e por ela se internaram. arco e flecha, pretendia obter abatendo os vivos.
A dada altura, o patrão fez parar a montada, e Sem dúvida que toda aquela encenação dos ele-
apearam-se. Ordenou, então, a Sindbad que subisse fantes queria dizer efectivamente: «Se queres dentes
a uma árvore, e aí ficasse, com as provisões de que tem-los aqui, não precisas matar-nos.» Sindbad correu
se tinham abastecido, atirando quando algum elefante à cidade, tendo andado mais de um dia e uma noite,
lhe passasse por baixo. E, naturalmente, que corresse para no fim encontrar seu amo em desassossego, com
logo a avisá-lo, assim que algum fosse abatido. Isto a sua demora, e o facto de ter descoberto, na mata,
dito, regressou à cidade. arrancada pela raiz, a árvore que lhe servia de poiso
Sindbad ficou o resto do dia, e toda a noite, em e de espera, que ele bem conhecia. Tranquilizado pela
cima da árvore, sem avistar nem sombra nem vulto de presença do escravo, são e escorreito, quis todavia
elefante. Na manhã seguinte, porém, ao erguer do Sol, saber que provação lhe acontecera, ao que Sindbad
apareceu grande manada daqueles trombudos masto- correspondeu com a narração - tim-tim por tim-tim -
dontes, caminhando descontraídos, na direcção da dos acontecimentos vividos naquelas últimas horas,
àrvore em que se empoleirava. Aguardou, e à distância que eram, sem dúvida, assombrosos.
mais curta de tiro, disparou vigorosa série de flechas E, para confirmação, foram ambos ao outeiro-
até que um dos bichos caiu por terra, fugindo os -cemitério, onde carregaram o seu próprio elefante
outros. Logo Sindbad correu a avisar o seu amo, que com os dentes todos que puderam enfardar. E o
se alegrou visívelmente com a notícia, tendo obsequia- comerciante agradeceu, quase de lágrimas nos olhos,
do o servo com boa comida, e louvado muito a sua des- chamando Sindbad de irmão, já que não o considerava
treza. E dali partiram a enterrar o animal numa grande mais como escravo, tão grande era a fortuna que ele
cova, com sentido que a seu tempo ficasse a carne con· lhe colocava ao alcance, e tão fácil de obter. ((Eu vos
sumida e permanecesse intacta a riqueza que consti- dou a liberdade, e Alá vos cumule de toda a casta de
tuíam as presas - dois magníficos dentes com mais bens e prosperidades. Doravante nenhum dos nossos
de cem arráteis de marfim. escravos voltará a morrer (e muitos morriam de facto,
Durante dois meses, Sindbad abateu, com pendu- pois era esse o seu destino quando os colocavam na
lar regularidade, um elefante por dia. Decorrido que árvore) para conseguir alguns dentes de elefante; e
foi este tempo de facilidades, a manada apareceu certa essa suprema ventura fica toda a cidade a devê-la à
manhã, mas em lugar de transitar, como sempre, por vossa descoberta. Em boa verdade, a cidade fica-vos
debaixo da Arvore, arremessou contra ela, em forma- devedora de grande fortuna.))
ção de ataque, despedindo berros estrídulos, como Agradeceu Sindbad, respondendo às referências
trombetas em fúria. Formaram cerco, trombas esten- amáveis com os votos para que Alá guardasse em
didas para cima, e eram tantos e tão enervados, que felicidade o seu ex-patrão e senhor. A liberdade que
provocavam autêntico tremor de terra. O arco e as fle- acabava de lhe ser dada recompensava-o já plena-
chas caíram das mãos de Sindbad, transido de medo mente. E só o que pedia, se lhe fosse permitido, era
e de assombro. O mais alto e mais poderoso dos ele- poder usá-la, para regressar enfim ao seu país. A mon-
fantes, sem sombra de dúvida o chefe da manada, ção não tardaria a mudar. Mas havia ainda barcos a
rodeou então o tronco da árvore com a tromba, e com carregar marfim, e ele muito feliz ficaria se embarcasse
tamanha força a sacudiu, que a arrancou pela raiz, e num deles, rumo à sua casa, aos seus parentes e
arremessou ao chão. Sindbad, agarrado ao ramo em amigos.
que se empoleirara, estatelou-se com ele, vendo-se Foi o própria amo de Sindbad, em casa de quem
chegado ao termo dos seus dias, pisoteado por aquelas este permaneceu até haver no porto navio com destino
centenas de mastodontes. Os elefantes, porém, não aos dois golfos, entre a Arábia e o Irão, capaz de levar
arremeteram; o mais velho agarrou nele com a tromba as cargas magnificas de sedas, de madeiras, e agora
e depÔ-lo, encavalitado, no dorso, marchando todos também de marfim, em quantidades dantes não atin-
dali, em boa ordem, para o interior da floresta. Andado gidas, - foi o próprio amo, agora amigo, quem o acom-
certo tempo, por trilhos abertos pelos bichos, foi Sind- panhOU ao navio, lhe pagou a viagem, e o cumulou
bad deposto em terra, apenas com a aljava vazia ao ainda de presentes, um deles, o maior dente de mar-
ombro, começando os elefantes a debandar, em várias fim até aí conhecido.
direcções, parecendo querer deixar o velho marinheiro O barco fez-se de vela, deixando aquele porto, meio
a sós, numa espécie de ermo, escondido e silencioso. escondido, em terra firme das indias; tocaram ainda
IntriÇlado, não sabendo se dormia e sonhava, ou estava nalgumas ilhas, a meterem refresco, e logo que volta-
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