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A MARINHA JOANINA (1)
Uma nova fase
Uma nova fase
aleceu o infante D. Henrique a 13 de Novembro de 1460,
deixando muito bem lançada a actividade marítima por-
Ftuguesa, em todo o Atlântico Norte e ao longo da costa
africana. As explorações tinham chegado à Serra Leoa, estava
descoberta uma parte do arquipélago de Cabo Verde e o comércio
ganhava uma dimensão apreciável, consolidada com a criação da
feitoria de Arguim, cuja fortaleza se começara a construir em 1455.
Por testamento, o Infante deixara uma grande parte dos seus bens
ao sobrinho D. Fernando (irmão de Afonso V), mas tudo o que
dizia respeito aos negócios e explorações marítimas em África
ficaram nas mãos da própria coroa que, por razões de vária ordem,
não manteve o ritmo que tiveram até aí.
Em 1460 encerrou-se, pois, um ciclo da História dos
Descobrimentos Portugueses, aqui tratado numa sucessão de 16
artigos com o título Marinha Henriquina. Começaremos agora
uma série a que chamaremos de Marinha Joanina, apesar de que
os primeiros capítulos abordarão acontecimentos que antecedem
alguns anos o tempo em que o futuro D. João II tomou conta dos
assuntos marítimos portugueses. A Marinha Joanina, apesar de
tudo, englobará um período largo, anterior ao joanino propria-
mente dito. Incluirá a fase transitória – para alguns um pouco
cinzenta - que decorreu entre a morte de D. Henrique e o surgimen-
to do príncipe D. João na governação dos “trautos da Guiné”: os
tempos em que D. Afonso V preferiu concentrar os seus esforços
em conquistas no Norte de África, e em que a política portuguesa
atravessou períodos algo complexos que pouco favoreciam as via-
gens atlânticas. D. João II, desenho a tinta da china de João Carlos Gomes (Museu de Marinha).
Na nossa Marinha Joanina ficará incluida toda a época que vai
desde a morte do infante D. Henrique até ao final do reinado de D. que se virava para a exploração dos oceanos, procurando alcançar
João II, em 1495. Falaremos das guerras africanas de D. Afonso V e os confins da África e a passagem para o Oceano Índico. E é por
de alguns factores externos que as determinaram; falaremos da tudo isto que se justifica a opção pelo título Marinha Joanina.
forma como o príncipe D. João, ainda jovem mas já com grande Os factos mais significativos das explorações marítimas por-
lucidez política, tomou conta dos negócios ultramarinos e passou a tuguesas, após a morte de D. Henrique, são aqueles que ocorreram
controlar as navegações para o Guiné; falaremos de como acabou quando dominou a acutilância política de D. João II. Foi ele que
por sobrepor as suas ideias às de seu pai, impondo uma política entendeu a possibilidade dos portugueses alcançarem a Índia de
onde vinham mercadorias ricas, até aí transportadas para a Europa,
O mostrengo que está no fim do mar através da Arábia e do Mar Mediterrânico. Como veremos, este
Na noite de breu ergueu-se a voar; salto qualitativo só foi possível quando se criaram condições políti-
À roda da nau voou três vezes, cas apropriadas, e quando o progresso técnico e o avanço da náuti-
Voou três vezes a chiar, ca permitiram a passagem do Equador e o reconhecimento da costa
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo, africana para sul, até passar o Cabo da Boa Esperança.
Meus tectos negros do fim do mundo?» Os próximos capítulos da Marinha Joanina, começarão por abor-
E o homem do leme disse, tremendo: dar a opção africana de Afonso V com as suas condicionantes e os
«El-Rei D. João Segundo!» episódios mais marcantes. Depois teremos que ver quais foram os
aspectos de política interna e externa que trouxeram à ribalta o
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?» príncipe D. João, e como ele conseguiu sobrepor a protecção do
Disse o mostrengo, e rodou três vezes, comércio ultramarino aos conflitos ibéricos em que seu pai se
Três vezes rodou imundo e grosso, envolvera. Seguem-se os episódios por que passou a exploração da
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse costa africana transpondo o Cabo da Boa Esperança e alcançando o
E escorro os medos do mar sem fundo?» Oceano Índico. Finalmente, importa abordar como, neste percurso,
E o homem do leme tremeu, e disse: surgiu o que é costume designar por Plano da Índia: uma ideia do
«El-Rei D, João Segundo!» Príncipe Perfeito, que condicionou uma série de atitudes políticas
por ele tomadas. De uma forma geral, no estudo desta fase dos
Três vezes do leme as mãos ergueu
Três vezes ao leme as reprendeu, Descobrimentos Portugueses, percebemos muito bem qual foi o
E disse no fim de tremer três vezes: papel do mar (e, particularmente, do Oceano Atlântico) no desen-
«Aqui ao leme sou mais do que eu: volvimento do país; mas, mais do que isso, podemos entender a
Sou um povo que quer o mar que é teu; forma do rei usar a sua Marinha como intrumento da política
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo, externa do Estado Português, e como ela foi o elemento chave para
Manda a vontade, que me ata ao leme, alcançar determinados objectivos nacionais.
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa, Mensagem J. Semedo de Matos
CTEN FZ
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