Page 217 - Revista da Armada
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Património Cultural da Marinha
Património Cultural da Marinha
Peças para Recordar
28. ATAPEÇARIA DE PORTALEGRE DA ESCOLA NAVAL
O CONCÍLIO DOS DEUSES
A tapeçaria existente no gabinete do Comandante da Escola Naval, obra da Manufactura de Tapeçarias de Portalegre,
segundo cartão do pintor portalegrense João Tavares (1908/1984), foi inspirada no episódio do Concílio dos Deuses
Marinhos narrado no Canto VI de “Os Lusíadas”.
Baco, despeitado por no Concílio dos Deuses (Canto I) ter sido vencida a sua oposição à viagem dos Portugueses,
desce ao fundo dos mares, ao próprio palácio de Neptuno, onde instiga os Deuses Marinhos a oporem-se violentamente
ao prosseguimento da frota gâmica.
Sob um fundo azul escuro, a tapeçaria de 2,58x3,40 m é dominada pelas figuras de Neptuno e Baco, perfeitamente
identificáveis pelos seus atributos.
As três figuras femininas poderão corresponder a Thétis, filha do Céu e da Terra, esposa de Oceano. Anfitrite, cavalgan-
do o Delfim que a aconselhou a entregar-se a Neptuno. E no canto inferior direito, Ino e seu filho, fugidos à loucura de
Atamante e convertidos em deuses por Neptuno. A figura com tronco de homem e corpo de peixe será porventura
Glauco, ou Tritão, ambos igualmente referidos por Camões no mesmo episódio.
Estilizados, completam o desenho vários animais marinhos: peixes, anémonas, corais, estrelas do mar, conchas e os
cavalos marinhos do “carro” de Neptuno.
No canto superior esquerdo as três naus da Armada prosseguem, enquadradas por ondas.
Em listel serpentino, partindo da nau do canto superior esquerdo e terminando no braço direito de Baco, os primeiros
versos da estância 38 do Canto VI:
“Enquanto este conselho se fazia / No fundo aquoso, a leda, lassa frota / Com o vento sossegado prosseguia, / Pelo tran-
quilo mar, a longa rota”.
Baco sustenta na mão direita umas folhas onde se lê: “E vós, Deoses do Mar...”, princípio da Est. 28 do mesmo canto.
A assinatura do pintor e a data figuram no canto inferior direito: “João Tavares – 1953”.
O monograma da Manufactura – M.T.P. – aparece no centro de uma anémona no canto inferior esquerdo.
A Manufactura de Tapeçarias de Portalegre deve-se por um lado à criatividade de Manuel do Carmo Peixeiro (1893 –
1964), engenheiro têxtil, inventor do ponto de nó da tapeçaria de Portalegre (inspirado em nó de pescador e único no
mundo), e por outro à iniciativa e persistência de Guy Roseta Fino, industrial de lanifícios, que acreditou ser possível,
contra o cepticismo geral, o aparecimento de raiz duma Arte com pouca tradição em Portugal.
Nos primeiros passos da Manufactura três pintores tiveram um papel fundamental: Guilherme Camarinha, já com algu-
ma experiência de cartonista adquirida em França, João Tavares e Renato Torres, ambos na altura radicados em
Portalegre, o primeiro professor do Liceu local, aguarelista de mérito, o segundo igualmente professor de desenho na
Escola Industrial.
Cabem a João Tavares os cartões das cinco primeiras tapeçarias executadas, ainda de modestas dimensões, a primeira
das quais “Diana” datando de 1947.
Guy Fino prossegue incansável a sua obra de divulgação da Tapeçaria de Portalegre, conseguindo a colaboração de
alguns nomes de relevo no panorama artístico nacional e em 1949, na Exposição Geral de Artes Plásticas, na S.N.B.A.,
em Lisboa estiveram patentes três tapeçarias da Manufactura: “Pescador” de Maria Keil, “Bela Aurora” de Júlio Pomar e
“Vaca” de Lima de Freitas, como que constituindo a apresentação pública da Manufactura de Tapeçarias de Portalegre.
Em 1952 são encomendadas pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, duas tapeçarias de grandes dimensões
a partir de cartões de Guilherme Camarinha: “ A Descoberta da Madeira” e “Funchal Porto Atlântico”.
Ambas foram expostas no Museu de Arte Antiga, aproveitando a coexistência duma mostra de tapeçaria francesa.
A comparação da multissecular e prestigiada tapeçaria francesa com a jovem e incipiente congénere portalegrense sal-
dou-se por um êxito rotundo e reconhecimento geral de qualidade.
É a partir de então que o mercado institucional aparece e as encomendas sucedem-se. Uma destas encomendas é a da
Escola Naval.
Actualmente a Manufactura de Tapeçarias de Portalegre tem renome internacional e as suas obras distribuem-se por
todos os continentes, associando a cidade do Alto Alentejo à assinatura de Artistas de craveira mundial.
O “Concílio dos Deuses” é uma obra de arte única, assinada pelo mesmo artista que a história regista como autor da
primeira tapeçaria saída dos teares portalegrenses.
Vem referida e fotografada nos “50 Anos da Tapeçaria em Portugal”, edição da Fundação Calouste Gulbenkian de
1996, curiosamente com a legenda trocada...
O seu valor acrescido à particulariedade de ser das primeiras Tapeçarias de Portalegre e única existente na Marinha
torna-a uma peça importante do Património Cultural da Marinha.
Escola Naval
(Texto de Rui Abreu, CMG MN)