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HISTÓRIAS DA BOTICA (9)



                               O Matemático
                               O Matemático






             em-me faltado a inspiração!      Baixo e atarracado, com uma lentidão  camente: foi segunda – feira!
             Por sorteio do destino e pela vontade  exagerada nos movimentos, fruto dos  Não ficava ofendido com tanta pergunta
         Tda Marinha, vejo-me, novamente, nos  muitos anos sob medicamentos psicoac-  idiota. Não havia porquê, nem este interesse
         bancos da escola a lutar com equações  tivos, apresentava-se precocemente gasto,  contínuo dos outros era fonte de sofrimento.
         matemáticas e teorias geopolíticas que mar-  para a idade de homem jovem. Achavam-  O que o impressionava eram as vozes que
         caram tempos idos, de permeio com estraté-  -no estranho e faziam dele uma espécie de  só ele parecia ouvir, trazendo-lhe men-
         gias para influenciar tempos modernos.
         Ora, tanta e tão nova informação, torna difí-
         cil a escrita sobre os simples temas a que,
         sem grande mérito, dedico os meus rabis-
         cos...

           Na verdade, regredi. Sinto-me novamente
         nos bancos da escola. Lembrei-me dos longos
         anos de estudo, que já carrego. Nunca me
         achei particularmente inteligente. Também
         nunca achei que o nosso sistema de ensino
         fosse especialmente adequado. Fiz, aliás, uma
         carreira académica com altos e baixos, em
         que a paixão por certos assuntos me levava
         ao 18, entrecortada por outros, em que em
         notas medianas foram o resultado de muitos
         dias de trabalho. Fui algumas vezes ultrapas-
         sado por outros, que sabia, terem trabalhado
         menos. Essa frustração, acredito hoje, faz
         parte do crescimento.
           De forma incompreensível, parece ser a
         mente que determina, sem nos perguntar,
         quais vão ser as nossas capacidades e inca-
         pacidades, os nossos dons, as nossas artes.
         Em muitos casos, determina de tal forma a
         nossa existência, que cria um mundo pró-
         prio, só dela.
           Assim, nesta noite de inacessíveis fórmulas
         matemáticas de rectas e curvas, em que se
         tenta modelar realidades, projectar futuros,
         organizar a vida, recordei um marinheiro que
         conheci numa unidade em terra, onde estive
         bastante tempo. Este marinheiro tinha uma
         capacidade especial, que a mim, já incapaz
         de controlar os trocos do café no dia a dia,
         impressionava muito. Era capaz de somar,
         rapidamente e com precisão, contas com
         múltiplos algarismos. Conseguia ainda dizer,
         em breves segundos, o dia da semana a que
         pertencia determinado dia, de um dado mês,
         de um qualquer ano, no passado. Parecia há
         primeira vista, como hoje é moda dizer, um
         sobredotado.
           Contudo, eu como médico da unidade,
         sabia a verdade. O Matemático frequentava
         a consulta de Psiquiatria e fazia, no Serviço
         de Saúde, uma injecção mensal, para con-  atracção de circo, propondo-lhe desafios  sagens de um outro mundo, que mais
         trolar as vozes, que ocasionalmente surgiam  aritméticos próprios de um computador, a  ninguém podia ver ou sentir. E mesmo
         dentro de si – era esquizofrénico – rezava o  que ele respondia com solicitude e destreza.  essas, só lhe traziam sofrimento quando se
         rótulo da velha e encarquilhada nota de alta  -Ó Matemático, que dia da semana foi 28  apercebia que ninguém, à sua volta, ouvia
         hospitalar, do único internamento a que  de Dezembro de 1992?         as mesmas vozes...
         tinha sido submetido.                Pensava um pouco e respondia mecani-  Era, apesar de tudo, estimado pela maioria.

         30 JUNHO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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