Page 390 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (20)




                       A Guerra com os turcos
                       A Guerra com os turcos


                                  no Mediterrâneo
                                  no Mediterrâneo





               Índia e as viagens transoceânicas  tentáculos para ocidente, ao longo do  ocupantes foram surpreendidos pela notí-
               tiveram um enorme impacte no  Mediterrâneo. A 23 de Maio de 1480 con-  cia da morte súbita do Sultão, vítima de
         Aideário português do século XVI e  quistaram Otranto, na Península Itálica,  peste, mas a ameaça permanecia latente.
         constituem, hoje em dia, aquilo que des-  perigosamente perto de Roma, dominando  Naturalmente que o poder naval oto-
         perta maior atenção dos historiadores, mas  o Mediterrâneo central. Veneza era espe-  mano era crescente, correspondendo à
         deve dizer-se que o Norte de África e o  cialmente afectada, porque o local permite  ascensão de um império que dominou os
         Mediterrâneo nunca estiveram ausentes da  o controlo da entrada do Adriático, mas  Balcãs e chegou às portas de Viena, de
         mente dos homens desse tempo. À partida  todo o movimento marítimo mediterrânico  forma que a hipótese de confronto não tar-
         o espaço marroquino apresentava-se como  era ameaçado por esta conquista, que não  daria a repetir-se. Em 1501 a Senhoria de
         o palco de uma “guerra justa” e “ne-  deixava insensíveis as autoridades por-  Veneza enviava ao Papa um pedido deses-
         cessária”: a guerra onde qualquer cavaleiro  tuguesas (estava-se no final do reinado de  perado de ajuda para que os soberanos
         sonhava alcançar honra e glória, comba-  Afonso V) por variadíssimas razões que  cristãos a ajudassem na guerra naval con-
         tendo inimigos da fé católica. Mas, para  importa referir: a primeira delas prende-se  tra os turcos. Nessa altura, D. Manuel
         além deste sentido de cruzada – que, certa-  com a importância que o comércio entre o  preparava-se para ir pessoalmente ao
         mente, nunca deixou de                                                           Norte de África à frente de
         estar presente e de pesar nas                                                    uma expedição militar, de
         análises políticas e nas de-                                                     forma que resolveu reen-
         cisões régias –, deve ver-se                                                     caminhar essas tropas para
         este interesse pelo Magreb,                                                      dar ajuda aos italianos nu-
         como um olhar para uma                                                           ma guerra que, mais uma
         zona fundamental para o                                                          vez, assumia os foros de
         controlo de um espaço ma-                                                        cruzada. “mandou el Rei
         rítimo, à volta do qual cres-                                                    que tomassem da armada
         cera a civilização europeia, e                                                   que tinha prestes para sua
         onde continuava a circular                                                       passagem [para a sua ida ao
         uma boa parte da seiva de                                                        Norte de África], trinta
         que se alimentava o velho                                                        naus, navios e caravelas,
         continente. À conquista de                                                       dos melhor equipados e
         Ceuta, seguiram-se as de                                                         artilhados”, diz-nos Damião
         Alcácer Ceguer, e Arzila,  Castelo de Aguz.                                      de Góis, na sua Crónica de
         levando à entrega de Tân-                                                        D. Manuel. O comando foi
         ger sem luta e ao estabelecimento de uma  Mediterrâneo e o Norte da Europa conti-  dado a D. João de Menezes – figura notá-
         trégua assinada em 1471. Nos anos que se  nuava a ter para Portugal; outra tem a ver  vel da guerra no Norte de África, neto do
         seguiram, a zona de influência dos por-  com o efeito que o avanço para ocidente de  primeiro governador de Ceuta – e, para
         tugueses cresceu para sul, criando-se uma  uma potência militar islâmica vai provocar  além dos trinta navios e cerca de 3500
         espécie de protectorado sobre as vilas de  no equilíbrio de forças entre o Norte de  homens, a esquadra foi-lhe acrescentada
         Safim e Azamor e levando até que D. João II  África, o reino de Granada, a Espanha dos  com um Regimento secreto (só revelável
         tentasse erguer uma fortaleza sobre o rio  reis católicos e Portugal; e outra ainda tem  quando toda a gente estivesse embarcada)
         de Larache, cerca de15 quilómetros para o  a ver com a questão religiosa em si, não  e meios adicionais para conquistar Mers el
         interior entre Alcácer Quibir e o mar. É  apenas porque que a antinomia entre Islão  Kibir, um local fortificado sobre a baía de
         claro que o Sultão de Fez bloqueou o aces-  e Cristianismo era especialmente aguda,  Orão, cidade que D. Manuel queria que
         so dos portugueses e obrigou à sua retira-  mas ainda porque a proclamação da cruza-  fosse ocupada. Os ventos contrários obri-
         da, que foi aceite pelo Príncipe Perfeito  da criava um vínculo especial entre os reis  garam os navios a bordejar durante três
         sem grande oposição. Dominava-se o mar  e o Papa: se por um lado tiravam vanta-  dias à vista do porto, permitindo o reforço
         e conseguia-se um comércio pacífico com  gens económicas dos bens da igreja, por  da praça e uma resistência inesperada, mas
         alguns dos portos da costa ocidental do  outro, viam-se obrigados a dar combate  é importante notar que este tipo de ope-
         Norte de África (cujas populações pediam  aos “infiéis”.              ração (uma operação anfíbia em que o
         a protecção portuguesa contra a violência  Em 8 de Abril de 1481, a bula Cogimur  poder ofensivo assenta na força dos
         da guerra civil que assolava o reino de  iubente altíssimo proclamava a cruzada con-  navios, com tropas que desembarcam) foi
         Fez), mas o rei achava inoportuno sujeitar  tra os turcos, e Portugal preparou uma  paradigmática e repetiu-se com sucesso
         o país a um esforço de guerra de con-  esquadra de 20 velas, que partiu para o  em múltiplas outras situações de que
         quista, quando tinha outros objectivos  Mediterrâneo comandada pelo bispo de  falaremos mais tarde.
         ultramarinos. Todavia, na Ásia Menor  Évora, D. Garcia de Meneses. Otranto foi
         crescia o império turco que em 1453 já con-  abandonada (sem que os portugueses           J. Semedo de Matos
         quistara Constantinopla e estendia os seus  chegassem a combater) quando os seus                  CFR FZ

         28 DEZEMBRO 2001 • REVISTA DA ARMADA
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