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HISTÓRIAS DA BOTICA (17)
A dor
A dor
m todas as doenças, em todo o sofri- Queria a minha ajuda. Já não percebia muitas vezes em lugares de poder são
mento que a vida nos impõe, encon- nada. Nem se era verdade a suspeita, nem agressivos e indelicados. Na minha mente,
Etram-se sempre três fases: a perplexi- a gravidade do diagnóstico que lhe apre- em que cada palavra tem peso, chamo-lhes
dade de início, o medo quando finalmente sentavam para o filho. trapalhões – pois a agressividade esconde
compreendemos o que nos atingiu e, final- Aceitei. Nessa tarde fomos ao Hospital. geralmente insegurança, ignorância ou
mente, queremos perceber o porquê....De Procurei o médico responsável pelo medo. São normalmente incompetentes,
todo o sofrimento esta é a fase mais longa,
pois perdura para além da dor. Se alguns
se habituam à dor, outros infelizes, como
eu, tentam achar – activamente – os
porquês para as suas dores e para as dores
que sentem à sua volta.
A história que vos trago hoje é a história
de um desses sofrimentos vazios, agrestes e
ocos. É uma história que guardo nos confins
da mente, pois faz com o que o mundo
pareça sem sentido e o meu medo maior –
pois eu, tal como muitos, escondo no fundo
da alma, sempre que posso, tudo o que não
compreendo, ou o que me faz sofrer...
Conheci, embarcado, um jovem ingres-
sado na Marinha há pouco tempo. Era um
daqueles jovens entusiastas para quem a
vida parece não ter fim e tudo flui pacifica-
mente. Tinha casado recentemente e falava
da mulher com carinho. Morava em
Santarém, onde comprara um pequeno
apartamento – a mulher nascera lá e lá
moravam os sogros, dos quais recebia
algum apoio.
Gostava de falar de carros, que são um
bom assunto de sonho, pois há sempre um
melhor, uma cor mais bonita, um novo
incremento técnico...Tinha de facto uma
mente de sonhador, sempre a fazer planos
de comprar isto e aquilo, de viajar para
aqui e para acolá, de fazer este ou aquele
curso. Era, recordo-me ainda, uma mente
optimista, sempre à espera da descoberta,
da novidade, do prazer...
A mulher engravidou, ainda durante a
comissão de embarque, e ele aguardava
ansiosamente um filho. Visitou-me na
unidade em que eu prestava serviço e,
como sempre com ele, tudo parecia bem.
Foi com alguma surpresa que o encontrei
nessa manhã, algum tempo depois, de ar
sombrio e sobrolho carregado. Algo havia
corrido mal no parto – este prolongou-se
demasiado, o filho tinha sofrido. Tinha
havido um compromisso neurológico
grave. O filho ia viver com paralisia cere-
bral – assim o tinham informado.
Para mais parecia ter havido erro médi- parto. Este, mesmo antes de eu falar, tentou com relações pessoais e profissionais con-
co, pois dizia: correr comigo da sala, dizendo que eu não flituosas. Conheci alguns médicos assim e
- Sabe Doutor, parece que deviam ter fazia parte da família, nem tinha nada a ver muitos outros profissionais de outras áreas.
feito o parto mais cedo. O bebé era grande com o assunto...Não foi a primeira vez que Percebi, pela atitude daquele trapalhão,
e insistiram em não fazer cesariana. encontrei pessoas assim na vida, que que por ali não se adiantaria nada. Na
30 MARÇO 2002 • REVISTA DA ARMADA