Page 104 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (17)



                                               A dor
                                               A dor







            m todas as doenças, em todo o sofri-  Queria a minha ajuda. Já não percebia  muitas vezes em lugares de poder são
            mento que a vida nos impõe, encon-  nada. Nem se era verdade a suspeita, nem  agressivos e indelicados. Na minha mente,
        Etram-se sempre três fases: a perplexi-  a gravidade do diagnóstico que lhe apre-  em que cada palavra tem peso, chamo-lhes
         dade de início, o medo quando finalmente  sentavam para o filho.      trapalhões – pois a agressividade esconde
         compreendemos o que nos atingiu e, final-  Aceitei. Nessa tarde fomos ao Hospital.  geralmente insegurança, ignorância ou
         mente, queremos perceber o porquê....De  Procurei o médico responsável pelo  medo. São normalmente incompetentes,
         todo o sofrimento esta é a fase mais longa,
         pois perdura para além da dor. Se alguns
         se habituam à dor, outros infelizes, como
         eu, tentam achar – activamente – os
         porquês para as suas dores e para as dores
         que sentem à sua volta.
           A história que vos trago hoje é a história
         de um desses sofrimentos vazios, agrestes e
         ocos. É uma história que guardo nos confins
         da mente, pois faz com o que o mundo
         pareça sem sentido e o meu medo maior –
         pois eu, tal como muitos, escondo no fundo
         da alma, sempre que posso, tudo o que não
         compreendo, ou o que me faz sofrer...
           Conheci, embarcado, um jovem ingres-
         sado na Marinha há pouco tempo. Era um
         daqueles jovens entusiastas para quem a
         vida parece não ter fim e tudo flui pacifica-
         mente. Tinha casado recentemente e falava
         da mulher com carinho. Morava em
         Santarém, onde comprara um pequeno
         apartamento – a mulher nascera lá e lá
         moravam os sogros, dos quais recebia
         algum apoio.
           Gostava de falar de carros, que são um
         bom assunto de sonho, pois há sempre um
         melhor, uma cor mais bonita, um novo
         incremento técnico...Tinha de facto uma
         mente de sonhador, sempre a fazer planos
         de comprar isto e aquilo, de viajar para
         aqui e para acolá, de fazer este ou aquele
         curso. Era, recordo-me ainda, uma mente
         optimista, sempre à espera da descoberta,
         da novidade, do prazer...
           A mulher engravidou, ainda durante a
         comissão de embarque, e ele aguardava
         ansiosamente um filho. Visitou-me na
         unidade em que eu prestava serviço e,
         como sempre com ele, tudo parecia bem.
           Foi com alguma surpresa que o encontrei
         nessa manhã, algum tempo depois, de ar
         sombrio e sobrolho carregado. Algo havia
         corrido mal no parto – este prolongou-se
         demasiado, o filho tinha sofrido. Tinha
         havido um compromisso neurológico
         grave. O filho ia viver com paralisia cere-
         bral – assim o tinham informado.
           Para mais parecia ter havido erro médi-  parto. Este, mesmo antes de eu falar, tentou  com relações pessoais e profissionais con-
         co, pois dizia:                    correr comigo da sala, dizendo que eu não  flituosas. Conheci alguns médicos assim e
           - Sabe Doutor, parece que deviam ter  fazia parte da família, nem tinha nada a ver  muitos outros profissionais de outras áreas.
         feito o parto mais cedo. O bebé era grande  com o assunto...Não foi a primeira vez que  Percebi, pela atitude daquele trapalhão,
         e insistiram em não fazer cesariana.  encontrei pessoas assim na vida, que  que por ali não se adiantaria nada. Na

         30 MARÇO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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