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HISTÓRIAS DA BOTICA (22)
Ao Zé...
Ao Zé...
Zé não era marinheiro. O Zé era Apesar de tão robustas credenciais, o Zé Foi num almoço oficial, na Marinha, que
meu amigo. Se falo dele aqui, foi era um homem pequeno de óculos me lembrei, Zé, que gostavas de ler os meus
O porque ainda há pouco, e como grossos. Tinha havido um inexplicável atra- poemas sem jeito. Que achavas graça ás
muitas vezes me acontece, a sua presença so do crescimento do qual ele nunca recu- minhas dissertações e ao humor, com que
se fez sentir inteira, como se ainda ontem perou. Era, tal como na sua mãe, o sorriso muitas vezes cobria a tristeza que me ia na
tivéssemos conversado...O Zé era um que marcava a sua presença. Gostava de alma. Lembrei-me, então, da tua companhia
engenheiro informático que comigo parti- falar: partilhámos muitas conversas e lon- nas cervejarias da Almirante Reis, quando
lhou a Residência Universitária e os anos gas noites de estudo. Gostava de um bom havia dinheiro para um “prego” e uma
cerveja. Lembrei-me também
dos teus cumprimentos, sérios, à
“macaquinha”, a prostituta
velha e gasta, que atacava nas
esquinas da Defensores de
Chaves. – Com quem man-
tinhas uma amizade, platónica,
como das que se mantém com
as vizinhas velhas e cheias de
netos...É que, sabes, estás pre-
sente em muitas coisas que
faço, sobretudo nas boas. Olha,
lembrei-me de ti em Timor.
Havias de gostar da aventura,
do sorriso dos meninos...do
calor daquela gente.
Do acidente que te levou de
nós, prefiro nem falar...não
consigo compreender como é
que um ciclista foi atropela-
do...na Holanda. Recordo, ao
contrário, os teus cozinhados,
os sorrisos e os gracejos.
Ora, no tal almoço, disse-
ram-se algumas palavras elo-
giosas, sobre outras palavras
que tenho escrito. Mas eu, que
nunca me saberei comportar
no meio dessas palavras, só me
lembrava de ti, o meu ver-
dadeiro amigo...Faltou-me a
tua chalaça, a tua confiança.
Doía-me sobretudo a tua
ausência.
Agora, Zé, deram-me um
prémio. Vão até publicar a
minha fotografia. Num delírio
de grandeza, decidi escrever
sobre ti (que, no fundo, é es-
crever sobre mim). Senti-me, se
de estudante. Era da Leiria rural. Os pais cozinhado e de um copo de vinho ao pôr quiseres, com coragem para dizer, que, nes-
tinham trabalhado em França e após do sol, enquanto discursava sobre os tas linhas e noutras, só conta a paixão e a
terem amealhado algum dinheiro grandes ideais - as causas da Liberdade, emoção. É disso que é feita a vida. O resto
voltaram para a terra que os vira nascer, tão bem representadas na Amnistia não passa de um vazio fantoche, que não
como é a história de muitos. Dedicavam- Internacional eram disso paradigma. Quem preenche a alma...Como tu já o sabias...
-se agora, o pai e os irmãos, à construção. o conhecia sabia, também, que tinha um Conheço alguns que me vão acusar de
A mãe, mulher forte, do campo, tinha léxico genuíno, bem apimentado, que escrever sobre fantasias, sobre coisas que
uma vasta horta cheia de petiscos, só aproveitava todas as pequenas ridicularias, não interessam, nem dão dinheiro...Outros,
superados pelo sorriso farto e afabilidade de que a nossa sociedade é profícua, para mais rebuscados, irão apontar-me o dedo
inexcedíveis... o riso farto... acusador dizendo que me estou a por em
30 AGOSTO 2002 • REVISTA DA ARMADA