Page 284 - Revista da Armada
P. 284

HISTÓRIAS DA BOTICA (22)



                                         Ao Zé...
                                         Ao Zé...







               Zé não era marinheiro. O Zé era  Apesar de tão robustas credenciais, o Zé  Foi num almoço oficial, na Marinha, que
               meu amigo. Se falo dele aqui, foi  era um homem pequeno de óculos  me lembrei, Zé, que gostavas de ler os meus
         O porque ainda há pouco, e como    grossos. Tinha havido um inexplicável atra-  poemas sem jeito. Que achavas graça ás
         muitas vezes me acontece, a sua presença  so do crescimento do qual ele nunca recu-  minhas dissertações e ao humor, com que
         se fez sentir inteira, como se ainda ontem  perou. Era, tal como na sua mãe, o sorriso  muitas vezes cobria a tristeza que me ia na
         tivéssemos conversado...O Zé era um  que marcava a sua presença. Gostava de  alma. Lembrei-me, então, da tua companhia
         engenheiro informático que comigo parti-  falar: partilhámos muitas conversas e lon-  nas cervejarias da Almirante Reis, quando
         lhou a Residência Universitária e os anos  gas noites de estudo. Gostava de um bom  havia dinheiro para um “prego” e uma
                                                                                        cerveja. Lembrei-me também
                                                                                        dos teus cumprimentos, sérios, à
                                                                                        “macaquinha”, a prostituta
                                                                                        velha e gasta, que atacava nas
                                                                                        esquinas da Defensores de
                                                                                        Chaves. – Com quem man-
                                                                                        tinhas uma amizade, platónica,
                                                                                        como das que se mantém com
                                                                                        as vizinhas velhas e cheias de
                                                                                        netos...É que, sabes, estás pre-
                                                                                        sente em muitas coisas que
                                                                                        faço, sobretudo nas boas. Olha,
                                                                                        lembrei-me de ti em Timor.
                                                                                        Havias de gostar da aventura,
                                                                                        do sorriso dos meninos...do
                                                                                        calor daquela gente.
                                                                                          Do acidente que te levou de
                                                                                        nós, prefiro nem falar...não
                                                                                        consigo compreender como é
                                                                                        que um ciclista foi atropela-
                                                                                        do...na Holanda. Recordo, ao
                                                                                        contrário, os teus cozinhados,
                                                                                        os sorrisos e os gracejos.
                                                                                          Ora, no tal almoço, disse-
                                                                                        ram-se algumas palavras elo-
                                                                                        giosas, sobre outras palavras
                                                                                        que tenho escrito. Mas eu, que
                                                                                        nunca me saberei comportar
                                                                                        no meio dessas palavras, só me
                                                                                        lembrava de ti, o meu ver-
                                                                                        dadeiro amigo...Faltou-me a
                                                                                        tua chalaça, a tua confiança.
                                                                                        Doía-me sobretudo a tua
                                                                                        ausência.
                                                                                          Agora, Zé, deram-me um
                                                                                        prémio. Vão até publicar a
                                                                                        minha fotografia. Num delírio
                                                                                        de grandeza, decidi escrever
                                                                                        sobre ti (que, no fundo, é es-
                                                                                        crever sobre mim). Senti-me, se
         de estudante. Era da Leiria rural. Os pais  cozinhado e de um copo de vinho ao pôr  quiseres, com coragem para dizer, que, nes-
         tinham trabalhado em França e após  do sol, enquanto discursava sobre os  tas linhas e noutras, só conta a paixão e a
         terem amealhado algum dinheiro     grandes ideais - as causas da Liberdade,  emoção. É disso que é feita a vida. O resto
         voltaram para a terra que os vira nascer,  tão bem representadas na Amnistia  não passa de um vazio fantoche, que não
         como é a história de muitos. Dedicavam-  Internacional eram disso paradigma. Quem  preenche a alma...Como tu já o sabias...
         -se agora, o pai e os irmãos, à construção.  o conhecia sabia, também, que tinha um  Conheço alguns que me vão acusar de
         A mãe, mulher forte, do campo, tinha  léxico genuíno, bem apimentado, que  escrever sobre fantasias, sobre coisas que
         uma vasta horta cheia de petiscos, só  aproveitava todas as pequenas ridicularias,  não interessam, nem dão dinheiro...Outros,
         superados pelo sorriso farto e afabilidade  de que a nossa sociedade é profícua, para  mais rebuscados, irão apontar-me o dedo
         inexcedíveis...                    o riso farto...                    acusador dizendo que me estou a por em

         30 AGOSTO 2002 • REVISTA DA ARMADA
   279   280   281   282   283   284   285   286   287   288   289