Page 296 - Revista da Armada
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preender os objectivos de Rabat e desenvolver esforços ticipação qualificada em alianças militares que complementam
diplomáticos nas instancias internacionais. as necessidades de defesa de todos os países.
Embora percebendo rapidamente que o desafio lançado por Se o planeamento de forças navais de Espanha estivesse
Marrocos não passava de um gesto simbólico com as finali- assente na utopia irresponsável da inexistência de ameaças,
dades externas e internas antes referidas, e beneficiando do nomeadamente as protagonizadas por Marrocos, país com o
apoio da UE, o governo de Madrid reforçou o dispositivo na qual Madrid até mantém um acordo de cooperação e amizade
área de crise com fragatas, corvetas e um submarino. Foi uma desde 1991, para se desenvolver apenas com base em novos
atitude de demonstração política do seu poder, destinada a: riscos e perigos relacionados com os tráficos de droga e pes-
dissuadir qualquer reacção militar marroquina; assumir o con- soas, ou com a protecção dos recursos marinhos, o desfecho da
trolo marítimo dessa área; garantir a projecção de força crise seria bem diferente. Conter esses riscos e perigos não fez
necessária à reposição da soberania. desaparecer a necessidade clássica do uso da força naval para
A Marinha de Guerra de Marrocos, devido ao desequilíbrio alcançar finalidades políticas associadas a reivindicações sobe-
do seu sistema de forças, que integra apenas algumas fragatas ranas sobre espaços terrestres e marítimos.
e corvetas, sem qualquer submarino, não pôde ser utilizada A disputa em torno do ilhéu mostrou a importância do papel
pelo governo de Rabat para, no quadro de uma crise delibera- das Marinhas de Guerra na gestão de crises, tirando partido da
da e bem pensada, exercer maior pressão sobre Espanha, sua autonomia, liberdade de circulação e aptidão para projec-
atraindo a atenção da comunidade internacional durante mais tar poder sobre terra. Evidenciou que só a capacidade comba-
alguns dias. Se Marrocos dispusesse de submarinos, os seus tente justifica a sua existência para dissuadir e conter as
navios de superfície ameaças. Como ficou
poderiam ter saído demonstrado, o empre-
para o mar, adoptando go das lanchas de fis-
comportamentos ajus- calização espanholas
PORTUGAL
PORTUGAL
tados à situação política CONTINENTAL apenas serviu para
CONTINENTAL
e militar, respeitando AÇORES mostrar discordância
AÇORES
as leis internacionais e política. A afirmação da
evitando incidentes soberania e a resolução
com a Marinha de MADEIRA satisfatória da crise
MADEIRA
Guerra de Espanha. requereram a força que
Desta forma, sem criar SELVAGENS só os meios navais com-
SELVAGENS
risco de guerra, o go- batentes possuem.
verno de Rabat tiraria É certo que a Es-
partido da prolongada CANÁRIAS panha tem gastos im-
mediatização da crise e portantes com a sua
dos factores psicológi- Marinha de Guerra.
cos associados ao objec- Contudo, sai-lhe muito
tivo político de recu- mais barato do que ver
peração de Ceuta e CABO VERDE os seus interesses vili-
Melilla. Com efeito, pendiados, ter de travar
naquelas circunstân- guerras para os defen-
cias, a Marinha de der, ou entregar a sua
Guerra espanhola, para segurança ao cuidado
alcançar os mesmos dos aliados. Se o fizes-
resultados, seria obrigada a empenhar mais unidades navais, se, deixando arruinar a Marinha de Guerra, por considerar dis-
algumas das quais se encontram com estados de prontidão pendiosa a sua edificação e sustentação, perante a materializa-
superiores a 8 dias. ção de qualquer ameaça militar teria de hipotecar o tesouro
O submarino espanhol conferiu o domínio do mar à sua público e a liberdade de acção política e económica durante
Armada. A faculdade de ocultação, autonomia, capacidade várias décadas, como já aconteceu diversas vezes a Portugal.
para actuar isolado e para colaborar com as forças de superfí- O desafio de Marrocos a Espanha demonstra que a História
cie, representou um potencial de combate perante o qual as fra- não pode ser esquecida. As questões estratégicas, sobretudo as
gatas e as corvetas da Marinha de Guerra de Marrocos não que se relacionam com espaços terrestres e marítimos, embora
serviriam para credibilizar as intenções do seu governo, adormecidas durante décadas, podem eclodir a qualquer
mesmo no contexto de uma crise de baixa intensidade. Como momento. Por isso, as capacidades navais para defrontar as
ficou provado, um sistema de força naval com capacidades ameaças têm de existir antes de elas se concretizarem, em vir-
combatentes desequilibradas, tem pouca utilidade estratégica. tude de os tempos de aviso e de reacção serem sempre muito
Na maior parte das vezes não serve sequer para viabilizar pos- curtos. Como afirmou Napoleão, o tempo é algo que nunca se
turas negociais. Por isso, uma Marinha de Guerra que dispo- recupera.
nha apenas de meios de superfície, não representa força, mas Na realidade, uma Marinha de Guerra confiável não se
fraqueza e desperdício, porque consome recursos sem propor- improvisa, porque os seus meios não são susceptíveis de pro-
cionar a correspondente contrapartida de segurança. dução imediata. Ou existem e são mantidos como instrumentos
A solidariedade demonstrada pela UE à Espanha foi impor- eficazes de defesa, ou o vazio de poder será explorado. Os
tante para a resolução da crise. Todavia, embora nenhum país idealistas até podem ignorar a dinâmica do poder nas relações
tenha capacidade para se bastar a si próprio em termos de internacionais e aceitar os avanços dos poderes contrários.
segurança, face à multiplicidade de ameaças, há um nível míni- Porém, os políticos e os militares, se o fizerem, revelam
mo de auto suficiência militar, que é indispensável para evitar vocação suicida e falta de sentido de Estado, pelo que não
factos consumados e garantir o tempo necessário para a diplo- serão merecedores da suprema confiança que a Nação neles
macia fazer actuar os mecanismos internacionais de resolução deposita.
de crises. É esse nível mínimo de capacidades militares, edifi-
cadas com equilíbrio e mantidas com eficácia, que garante a António Silva Ribeiro
dissuasão ou as iniciativas de defesa próprias, e permite a par- CFR
6 SETEMBRO/OUTUBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA