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preender os objectivos de Rabat e desenvolver esforços  ticipação qualificada em alianças militares que complementam
         diplomáticos nas instancias internacionais.          as necessidades de defesa de todos os países.
           Embora percebendo rapidamente que o desafio lançado por  Se o planeamento de forças navais de Espanha estivesse
         Marrocos não passava de um gesto simbólico com as finali-  assente na utopia irresponsável da inexistência de ameaças,
         dades externas e internas antes referidas, e beneficiando do  nomeadamente as protagonizadas por Marrocos, país com o
         apoio da UE, o governo de Madrid reforçou o dispositivo na  qual Madrid até mantém um acordo de cooperação e amizade
         área de crise com fragatas, corvetas e um submarino. Foi uma  desde 1991, para se desenvolver apenas com base em novos
         atitude de demonstração política do seu poder, destinada a:  riscos e perigos relacionados com os tráficos de droga e pes-
         dissuadir qualquer reacção militar marroquina; assumir o con-  soas, ou com a protecção dos recursos marinhos, o desfecho da
         trolo marítimo dessa área; garantir a projecção de força  crise seria bem diferente. Conter esses riscos e perigos não fez
         necessária à reposição da soberania.                 desaparecer a necessidade clássica do uso da força naval para
           A Marinha de Guerra de Marrocos, devido ao desequilíbrio  alcançar finalidades políticas associadas a reivindicações sobe-
         do seu sistema de forças, que integra apenas algumas fragatas  ranas sobre espaços terrestres e marítimos.
         e corvetas, sem qualquer submarino, não pôde ser utilizada  A disputa em torno do ilhéu mostrou a importância do papel
         pelo governo de Rabat para, no quadro de uma crise delibera-  das Marinhas de Guerra na gestão de crises, tirando partido da
         da e bem pensada, exercer maior pressão sobre Espanha,  sua autonomia, liberdade de circulação e aptidão para projec-
         atraindo a atenção da comunidade internacional durante mais  tar poder sobre terra. Evidenciou que só a capacidade comba-
         alguns dias. Se Marrocos dispusesse de submarinos, os seus  tente justifica a sua existência para dissuadir e conter as
         navios de superfície                                                                ameaças. Como ficou
         poderiam ter saído                                                                  demonstrado, o empre-
         para o mar, adoptando                                                               go das lanchas de fis-
         comportamentos ajus-                                                                calização espanholas
                                                                  PORTUGAL
                                                                  PORTUGAL
         tados à situação política                               CONTINENTAL                 apenas serviu para
                                                                 CONTINENTAL
         e militar, respeitando                     AÇORES                                   mostrar discordância
                                                    AÇORES
         as leis internacionais e                                                            política. A afirmação da
         evitando incidentes                                                                 soberania e a resolução
         com a Marinha de                                  MADEIRA                           satisfatória da crise
                                                           MADEIRA
         Guerra de Espanha.                                                                  requereram a força que
         Desta forma, sem criar                               SELVAGENS                      só os meios navais com-
                                                              SELVAGENS
         risco de guerra, o go-                                                              batentes possuem.
         verno de Rabat tiraria                                                                 É certo que a Es-
         partido da prolongada                               CANÁRIAS                        panha tem gastos im-
         mediatização da crise e                                                             portantes com a sua
         dos factores psicológi-                                                             Marinha de Guerra.
         cos associados ao objec-                                                            Contudo, sai-lhe muito
         tivo político de recu-                                                              mais barato do que ver
         peração de Ceuta e                      CABO VERDE                                  os seus interesses vili-
         Melilla. Com efeito,                                                                pendiados, ter de travar
         naquelas circunstân-                                                                guerras para os defen-
         cias, a Marinha de                                                                  der, ou entregar a sua
         Guerra espanhola, para                                                              segurança ao cuidado
         alcançar os mesmos                                                                  dos aliados. Se o fizes-
         resultados, seria obrigada a empenhar mais unidades navais,  se, deixando arruinar a Marinha de Guerra, por considerar dis-
         algumas das quais se encontram com estados de prontidão  pendiosa a sua edificação e sustentação, perante a materializa-
         superiores a 8 dias.                                 ção de qualquer ameaça militar teria de hipotecar o tesouro
           O submarino espanhol conferiu o domínio do mar à sua  público e a liberdade de acção política e económica durante
         Armada. A faculdade de ocultação, autonomia, capacidade  várias décadas, como já aconteceu diversas vezes a Portugal.
         para actuar isolado e para colaborar com as forças de superfí-  O desafio de Marrocos a Espanha demonstra que a História
         cie, representou um potencial de combate perante o qual as fra-  não pode ser esquecida. As questões estratégicas, sobretudo as
         gatas e as corvetas da Marinha de Guerra de Marrocos não  que se relacionam com espaços terrestres e marítimos, embora
         serviriam para credibilizar as intenções do seu governo,  adormecidas durante décadas, podem eclodir a qualquer
         mesmo no contexto de uma crise de baixa intensidade. Como  momento. Por isso, as capacidades navais para defrontar as
         ficou provado, um sistema de força naval com capacidades  ameaças têm de existir antes de elas se concretizarem, em vir-
         combatentes desequilibradas, tem pouca utilidade estratégica.  tude de os tempos de aviso e de reacção serem sempre muito
         Na maior parte das vezes não serve sequer para viabilizar pos-  curtos. Como afirmou Napoleão, o tempo é algo que nunca se
         turas negociais. Por isso, uma Marinha de Guerra que dispo-  recupera.
         nha apenas de meios de superfície, não representa força, mas  Na realidade, uma Marinha de Guerra confiável não se
         fraqueza e desperdício, porque consome recursos sem propor-  improvisa, porque os seus meios não são susceptíveis de pro-
         cionar a correspondente contrapartida de segurança.   dução imediata. Ou existem e são mantidos como instrumentos
           A solidariedade demonstrada pela UE à Espanha foi impor-  eficazes de defesa, ou o vazio de poder será explorado. Os
         tante para a resolução da crise. Todavia, embora nenhum país  idealistas até podem ignorar a dinâmica do poder nas relações
         tenha capacidade para se bastar a si próprio em termos de  internacionais e aceitar os avanços dos poderes contrários.
         segurança, face à multiplicidade de ameaças, há um nível míni-  Porém, os políticos e os militares, se o fizerem, revelam
         mo de auto suficiência militar, que é indispensável para evitar  vocação suicida e falta de sentido de Estado, pelo que não
         factos consumados e garantir o tempo necessário para a diplo-  serão merecedores da suprema confiança que a Nação neles
         macia fazer actuar os mecanismos internacionais de resolução  deposita.
         de crises. É esse nível mínimo de capacidades militares, edifi-
         cadas com equilíbrio e mantidas com eficácia, que garante a                            António Silva Ribeiro
         dissuasão ou as iniciativas de defesa próprias, e permite a par-                                    CFR

         6 SETEMBRO/OUTUBRO 2002 • REVISTA DA ARMADA
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