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HISTÓRIAS DA BOTICA (15)
O Perigoso Fuzileiro
O Perigoso Fuzileiro
á algum tempo participei numa em outros navios, com outras guar- grupo de desembarque, refiro-me, isso
missão de manutenção de paz, nições... sim, à atitude em relação aos pobres
H num distante país. Tinha havido Notei com interesse, também, a subtil locais.
uma guerra, com muitos mortos, quase cumplicidade que existia entre o oficial e Nas primeiras incursões, vi, em todos,
todos simples civis, muito ódio e muito os seus subordinados, que tornava este as mesmas expressões de espanto e per-
sofrimento... grupo de homens, num dos mais harmó- plexidade, pela destruição, pela pobreza,
Precisamente porque se vivia um am- nicos que alguma vez pude presenciar. pelos pés descalços...pelo sofrimento.
biente de guerra civil e Com o tempo, este
se afiguravam neces- primeiro choque foi,
sárias missões em terra, assim me pareceu,
havia um destacamen- ultrapassado por todos
to de fuzileiros embar- (até por mim...). Cada
cado. Entre as missões um passou a fazer o
destinadas a estes ho- que o coração lhe dita-
mens, estavam a de va. Os fuzileiros, a
manusear os botes pa- despeito do seu ar bé-
ra desembarque e a de lico, de óculos escuros
assegurar a segurança e arma em punho,
dos militares em ser- começaram a distribuir
viço em terra...como sorrisos...Do grupo,
era o caso do pessoal cedo reparei num des-
de saúde... Para esta tes fuzileiros, que
última tarefa, havia abraçava as muitas
mesmo uma unidade crianças, descalças,
especial, particular- que nos recebiam.
mente bem treinada. Cantava com elas....Os
A princípio parece- outros, incluindo os
ram-me homens rijos, homens dos botes, fa-
duros, de poucas pala- ziam coro com eles
vras e habituados a numa alegre confusão,
tudo. Com o tempo, onde nem língua, nem
percebi que eram mui- cultura, nem guerra,
to mais do que tudo nem medo, faziam
isto. De uma moral diferença...
forte, geriam a vida Vi, muitas vezes,
entre si e em relação ainda, esse fuzileiro,
aos outros no navio, levar comida, que dis-
com extraordinária tribuía generosamente
alegria. Cedo percebi, pelos petizes estupe-
também, que tinham factos. Quando já não
interesses ou hobbies, tinha nada para dar,
bastante elaborados, sorria...E era tal o sor-
revelando uma cultura riso, que vi, muitas
acima da média: ele vezes, até a mais tími-
era a ornitofilia, ou a da das crianças sorrir
fotografia, havia sem- de volta, como se de
pre assunto e este era magia se tratasse...
bem estudado, não Um dia, ele e outros
algo que se colou ao organizaram na praia
espírito na noite anterior. Percebi que o oficial se sujeitava aos mes- uma aula de ginástica. E era ver crianças
Para meu agrado (como saberá o leitor mos trabalhos dos seus homens, quando aos magotes, esfarrapadas, com os corpos
das histórias anteriores), não descu- eu próprio decidi correr ao lado dele – sujos e as cabeças com tinha, aos saltos e
ravam o corpo e era vê-los a bordo, expondo as minhas insuficiências, mas aos pulos ao som do nosso militar, afina-
dinamizando outros, em corridas e isso serão outras histórias... dos e orgulhosos pela atenção que lhes
ginásticas quotidianas – livrando-me Todavia, tudo isto não traria nada de era dispensada. Esses momentos foram
assim da chalaça amiga, com que novo, não fora a actuação destes militares sentidos por todos como especiais e fosse
muitas vezes fui brindado, quando de verde no terreno. Não me refiro sequer eu capaz de escrever a vida e seria capaz
adoptei comportamentos semelhantes, à proficiência no garantir da segurança do de relatar a poesia que se sentia no ar
30 JANEIRO 2002 • REVISTA DA ARMADA