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ESTÓRIAS – 2




                              A Repetição Oral
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               turma subia a escadaria principal com  pressionante e tornara-se opressivo, causava mal  da escolha dos “felizes contemplados” com o
               passos pesados e vagarosos. Como  estar. O zumbido das moscas era nitidamente  “previlégio” da subida ao estrado através de
         A  que a tentar retardar aquilo que, na-  perceptível e o ruído de qualquer pequeno e in-  bolas numeradas a tirar à sorte do interior de
         quele momento, se apresentava já como ine-  voluntário movimento de arrastar nervoso de  uma urna de madeira, eram soberanamente
         vitável: a repetição oral na aula de Navegação  mão ou de pé, em circunstâncias normais irrele-  desprezados. Resolvesse ou não tirar a “bola
         Astronómica.                       vante, tornava-se, nessa altura, desproporciona-  da sorte”, o nome finalmente chamado já tinha
           Chegada ao primeiro andar contornou a va-  damente barulhento, mesmo assustador.  sido previamente seleccionado e só por mera
         randa larga, aberta sobre a amplidão do átrio   O mestre, ostensivamente refastelado no seu  coincidência correspondia ao número da bola
         e meteu pelo corredor sul. Eram dezassete os  cadeirão, por detrás da secretária, num dos can-  saída da urna. Facto esse confirmado, aliás, pela
         componentes daquela turma, donos de outras  tos do estrado, acariciava levemente, com delei-  turma, por mais de uma vez.
         tantas expressões desconsoladas que, já sem  te, dir-se-ia até com verdadeiro amor, a careca   Por fim, passados longos e angustiosos mi-
         réstea de esperança, se iam aproximando da  luzidia e nem sequer se dignava mirar os seus  nutos que pareceram horas e com a inexorabi-
         porta da sala de aula. Faziam parte do curso de  discípulos, cujos olhares inexpressivos, morti-  lidade de sentença por juiz proferida, a voz do
         marinha cujos conhecimentos iriam,  dentro em  ços, fixavam desesperadamente as folhas dos  mestre soou, horrenda e temerosa, gritando
         breve, ser inevitavelmente postos à prova.  apontamentos, incapazes de se erguer e, quem  com um berro medonho o número da desgra-
           Mas porquê o desânimo e as expressões des-  sabe, cruzar-se com o do mestre, que, assim, po-  çada vítima!
         consoladas daqueles dezassete infelizes, porquê  deria ser tentado a escolher uma vítima... Por-  No cérebro do cadete chamado à pedra, já
         o drama, numa tão bela manhã de sol radioso  que, para o “TRRRIM”, os tradicionais métodos  de si razoavelmente obnubilado pelo ambien-
         que nenhum deles parecia notar?
           Não era propriamente a Navegação Astro-
         nómica, cujas maravilhas a todos certamente
         encantavam, mas sim o feitio do “Mestre”, que
         tão impudicamente a manipulava e retorcia,
         transformando-a num verdadeiro e diabólico
         instrumento de tortura.
           Conhecido por largas gerações de Oficiais de
         Marinha pela alcunha de “TRRRIM”, o lendário
         “catedrático” da Escola Naval parecia compra-
         zer-se em baralhar, confundir, enfraquecer e final-
         mente desmantelar os restos de firmeza e auto-
         confiança com que os alunos eventualmente se
         apresentavam nas suas aulas. A razão desse estra-
         nho procedimento nunca foi aprofundadamente
         investigado e muito menos descoberto.
           A verdade, porém, é que nenhum dos seus
         muitos ex-alunos jamais esqueceu os gritos lanci-
         nantes e as expressões aparentemente sem nexo
         que lançava quando menos se esperava, por tudo
         e por nada, intercalados por silêncios lúgubres e
         depressivos, durante os quais esfregava, ora plá-
         cida, ora furiosamente, a luzidia calva, criando
         momentos do mais requintado “suspense” em
         que os alunos sustinham as respirações ofegantes
         na vã tentativa de afastar de si próprios a atenção
         e, o que era ainda pior, a ira do mestre.
           Na manhã a que no início desta crónica alu-
         dimos, porém, o desconsolo dos cadetes, que
         a previsão de mais uma requintada sessão à
         moda do “TRRRIM” amplamente justificava,
         dera lugar a uma verdadeira angústia, porque o
         mestre anunciara, na lição anterior, a realização
         de uma repetição oral (que em linguagem mais
         corriqueira significa “chamadas”) para revisão
         da matéria. A simples lembrança do requinte
         com que as vítimas de anteriores sessões eram
         tratadas não era nada de bom augúrio e espa-
         lhava o temor nos espíritos, transmitindo uma
         real sensação de amargura.
           O silêncio que se seguiu à ocupação dos lu-
         gares por cada um dos cadetes era de facto im-

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