Page 204 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. MANUEL (37)




              Uma esquadra para atacar Goa
              Uma esquadra para atacar Goa



         O                                  nando Coutinho. É outra questão discutível  e de que viremos ainda a falar com mais
               episódio com os capitães que aban-
               donaram Ormuz deixou Afonso de  que tem sido vista como desobediência por  pormenor – que o convenceu a desviar a
               Albuquerque sem possibilidades de  uns, e como bom senso por outros, alegan-
                                                                               sua rota para conquistar Goa, argumen-
         continuar a pressionar Cogeatar, retirando-se  do estes que as tensões existentes com uma  tando que seria um momento favorável e
         com Francisco de Távora para Socotorá e au-  boa parte dos capitães exigiam prudência.  traria muito mais benefícios ao emergente
         torizando (finalmente) João da Nova a partir  Sobretudo, que as coisas fossem conduzidas  Estado Português da Índia.
         para a Índia com a Frol de la                                                       Não arriscarei muito se
         Mar. Apesar de tudo, deixou                                                       disser que qualquer estrate-
         ordens a Francisco de Távora                                                      ga do século XXI aceita que
         para que, em nome do “Ca-  Biblioteca Real de Haia                                o domínio do mar (seja ele
         pitão-Mor do Mar do Além”                                                         referido a um espaço exíguo,
         (ele próprio), reunisse todos                                                     como o Índico, ou a todo o
         os navios que por ali encon-                                                      mundo) exige  uma base de
         trasse, enquanto foi até ao                                                       operações forte, e um controlo
         Cabo Guardafui, onde dei-                                                         absoluto das linhas de comuni-
         xou Fernão Gomes em ter-                                                          cação. E, muito naturalmen-
         ra, com cartas para o Preste                                                      te, esta constatação resulta da
         João. Entretanto, a  Arma-                                                        análise de situações passadas
         da dos Rumes, comandada                                                           – mesmo aquelas em que os
         por Hussain Mushrif, sai do                                                       actuantes não conseguiram
         Mar Vermelho e dirige-se ao                                                       sistematizar este pensamento
         Guzerate, passando por Al-                                                        de forma tão clara e objectiva,
         buquerque que, ou não se                                                          como hoje surge em todos os
         apercebeu dela, ou ignorou                                                        livros de estratégia. Ora no
         a sua passagem, mas é es-                                                         final desta primeira década
         tranho (e dá que pensar) que   Representação de Goa, por Jan Huygen van Lischoten, ano 1595.  do século XVI, as normas que
         assim tenha procedido, por-                                                       D. Manuel envia para a Índia
         que as suas ordens apontavam para a guarda  de forma a que aqueles com que tinha havido  são evidentes quanto à vontade de dominar
         do Babel Mandeb e para que se dirigisse ao  problemas se retirassem para Lisboa com o  o sistema de comunicações marítimas, mas
         Guzerate logo que lhe fosse possível. Con-  Vice-Rei cessante, pois não havia nenhuma  não são tão claras quanto ao estabelecimen-
         seguindo reunir mais dois navios, que por  dúvida quanto ao que viria a ser o seu fim se  to de uma base sólida para lançar as opera-
         ali passavam a caminho da Índia (de Diogo  ficassem com Albuquerque na Índia.  ções navais necessárias. Fala da construção
         de Melo e Martim Coelho), volta para Or-  Todos os pormenores dos acontecimentos  de fortalezas por aqui e por acolá, do apoio
         muz em Agosto de 1508, e durante um ata-  ocorridos durante este ano de 1509, quer  dado por vassalos locais, mas todos estes ele-
         que que fez a Calaiate, soube por um mouro  sejam aqueles que precederam o embarque  mentos carecem da solidez de uma base que
         o que tinha acontecido com D. Lourenço de  de D. Francisco de Almeida, quer os que  seja fácil de defender e difícil de bloquear, que
         Almeida e com o ataque que os portugueses  se seguiram, antes da morte trágica de  tenha condições de sobrevivência, que per-
         haviam sofrido em Chaul, mas não alterou  D. Fernando Coutinho (que, por sinal, era  mita descanso às tripulações, reparação (ou
         as suas intenções. Só no final do ano partiu,  sobrinho de Albuquerque), num combate  mesmo construção) de navios, etc.. Ora Goa,
         efec tivamente para a Índia onde foi encontrar  contra o rei de Calecut, são importantes para  se fosse conquistada tinha tudo isto e muito
         D. Francisco de Almeida em Cananor, pronto  entender bem as relações entre diferentes  mais: era o local ideal para controlar as rotas
         para avançar com a esquadra que atacou os  partidos de portugueses que já se degla-  marítimas que percorriam a costa indiana
         Rumes em Diu (Marinha de D. Manuel (33)).  diavam no Oriente, mas seria enfadonho  (estava aliás, muito perto da ilha de Angedi-
         É particularmente delicada e difícil a análi-  estar aqui a relatá-los. Sobretudo, levaria  va, onde D. Manuel tinha pensado construir
         se das razões mais profundas do comporta-  a que se perdesse o sentido global do que  uma fortaleza portuguesa) e encontrava-se
         mento de Albuquerque durante os três anos  foi uma medida decisiva tomada pelo novo  na encruzilhada de dois centros de poder da
         que passara à volta de Ormuz. Como se sabe,  Governador, ao decidir avançar para a con-  Índia, que viviam em permanente conflito:
         tinha em sua posse uma carta que o nomea-  quista de Goa, no princípio de Fevereiro de  o reino Hindu de Vijaynagar (aparece nas
         va governador da Índia a partir de Janeiro  1510. A aparência dos factos leva a pensar  crónicas como “Bisnaga”) e o conjunto dos
         de 1509 e, aparentemente, tinha passado três  que Albuquerque saiu de Cochim, à fren-  sultanatos que resultaram do desmembra-
         anos a evitar encontrar-se com D. Francisco  te de cerca 20 velas e 1200 homens, com a  mento do império Bahami, entre os quais se
         de Almeida, ocupando-se com as acções de  intenção de se dirigir ao estreito (entrada  contava o Bijapur, cujo Sultão tinha morrido
         Ormuz, que poderiam ter uma razão de ser  do Mar Vermelho), de onde Duarte de Le-  recentemente, deixando um vazio de poder
         que noutra altura trataremos.      mos lhe pedia reforço de navios para a sua  que facilitava a tarefa aos portugueses. Prova-
           Entretanto a vitória retumbante do Vice-Rei  acção de Capitão-Mor da Costa de Além  velmente, Goa estaria no centro de um plano
         contra a Armada dos Rumes, deu a D. Fran-  (o cargo que Albuquerque desempenhara  que acompanhava Albuquerque há alguns
         cisco um prestígio extraordinário permitindo-  antes). Passou por Cananor e foi fundear  anos, mas disso falaremos a seguir.
         -lhe protelar a entrega do poder com evasivas  a Onor. Aí lhe apareceu Timoja – uma fi-                Z
         de vária ordem, que só viriam a ser resolvidas  gura curiosa que acompanha a presença    J. Semedo de Matos
         com a presença do Marechal do Reino, D. Fer-  portuguesa na Índia, durante estes anos,            CFR FZ

         22  JUNHO 2003 U REVISTA DA ARMADA
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