Page 207 - Revista da Armada
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te opressivo que se vivia no momento, a refe-  ram quatro alternativas possíveis para a  reso-  os seus elementos se levantaram ruidosamente
         rência à sua pessoa soou, porém, como um eco  lução do problema:      e se lançaram para o estrado, dispostos a ajudar
         longínquo, como se fora o ruído ainda ténue do   a) Engrolar a resposta possível, rebuscando  a vítima. Desfizera-se subitamente a atmosfera
         trovão que prenuncia a aproximação da borras-  aquilo que ainda se encontrasse nos escaninhos  de receosa expectativa que rodeava a aula e, ao
         ca, ainda a razoável distância, mas inevitável e  da memória; esta alternativa apresentava uma  abrigo da insólita situação, todos buscavam o
         ameaçadora. Era um daqueles momentos em  probabilidade elevada de não satisfazer o mes-  desejado escape para os nervos em franja e, qui-
         que se gostaria de ter dons sobrenaturais para,  tre e, pior ainda, poderia exacerbar o seu esta-  çá, uma oportunidade de evasão.
         num ápice e com a ajuda de apenas algumas  do de espírito inconstante, já de si pouco dado   Correram mais tarde versões das mais diversas
         palavras mágicas, poder desaparecer. Mas a  a condescendências;       àcerca deste extraordinário episódio, uma das
         verdade, a triste realidade, era a daquele mo-  b) Inventar parte da resposta, acrescentando aos  quais garantia mesmo que a vítima conseguira
         mento trágico que estava mesmo a viver... Por  reduzidos conhecimentos àcerca da matéria em  ainda, num prodígio de ligeireza, já caída e com
         isso, o cadete em questão limitou-se a engolir em  questão mais alguns palpites presumivelmente  um imperceptível toque de braço, desviar o re-
         seco, passou a língua já um pouco encortiçada  verdadeiros, hipótese ainda mais perigosa que a  ferido globo quando ele tombava perigosamen-
         pelos lábios ressequidos e levantou-se devagar,  anterior, de resultados francamente negativos;  te sobre a sua cabeça, evitando assim um mal
         a muito custo (como se o corpo se tivesse, de re-  c) Confessar o desconhecimento ou a falta de  maior antes de se imobilizar por completo... Mas
         pente, tornado pesado como o chumbo), am-  conhecimentos mais detalhados sobre o assun-  todas elas se desculpam, por mais fantasiosas e
         parando-se a custo ao tampo da carteira. À sua  to, alternativa de efeitos muito provavelmente  absurdas, dada a confusão indescritível que por
         volta, embora ninguém ousasse ainda levantar o  catastróficos e por esse motivo muito pouco  momentos se instalou na sala, logo após o des-
         olhar fixado sobre as folhas dos apontamentos,  aconselhável;          maio, seguido da aparatosa queda.
         adivinhavam-se cautelosos suspiros de alívio,   d) Efectuar uma eficiente “manobra de di-  Perante o visível e incontrolado nervoso do
         soltos pelos que haviam sido poupados àquele  versão”.                mestre, todos os alunos se atropelavam para so-
         primeiro sacrifício.                 E foi precisamente depois de uma rápida aná-  correr a “infortunada vítima” e, mais ainda, para
           A vítima, com passo pouco seguro, caminhou  lise das várias hipóteses ou alternativas apre-  ajudar a removê-la da sala em direcção à botica,
         em direcção ao estrado e subiu os degraus de-  sentadas que a vítima do “TRRRIM”, em bre-  onde poderia ser convenientemente “socorrida”,
         vagar. Na sua mente, agora um pouco mais cal-  víssimos instantes, se decidiu inabalavelmente  pois isso permitiria ainda furtarem-se às temidas
         ma, a neblina inicial dissipava-se e os neurónios,  pela última delas.  chamadas do “TRRRIM”. Ninguém suspeitara,
         alertados pelo choque brutal que se propagara   Os restantes elementos da turma seguiam  porém, de que tudo não passara de uma bem
         ao seu sistema nervoso, preparavam-se para o  com indisfarçável ansiedade a cena que se de-  conseguida “manobra de diversão”!
         combate, por muito desigual que ele fosse.  senrolava no estrado e se, ao ouvirem a respos-  Depois de tudo serenar, o que ainda levou
           Depois de alguns momentos de espera verda-  ta acertada à primeira pergunta sentiram algu-  o seu tempo, a aula ainda prosseguiu embora
         deiramente angustiantes, que pareceram uma  ma satisfação, já o mesmo não sucedeu quando  já sem a carga nervosa do início, pois o mestre
         eternidade, o “TRRRIM” atirou a primeira per-  ouviram o mestre fazer nova pergunta e insistir  continuava visivelmente abalado, sem conse-
         gunta, que felizmente mereceu uma resposta  no assunto, mais e mais, com sanha demoníaca,  guir afivelar de novo a máscara feroz que nestas
         acertada, o que deu ao cadete interpelado um  perante a ligeira hesitação da vítima e a pausa  ocasiões usava e com a qual procurava escon-
         poucochinho de auto-confiança, de que bem  que se lhe seguiu. Nada, porém, fazia prever,  der, sabe-se lá porquê, o bom coração que, no
         precisava naquela altura de crise. Mas outra  mesmo nos sonhos mais delirantes, aquilo que  fundo, muitos lhe reconheciam. De tal forma
         logo se lhe seguiu:                estava prestes a acontecer perante os seus olhos.  abalado se encontrava e, quem sabe, com algum
           “Diga-me quais são as operações de rectifica-  O cadete em questão, com um ar cansado, olhou  peso na consciência por se considerar afinal cul-
         ção do sextante...”                o mestre inexpressivamente e começou a falar  pado da ocorrência, que pretendeu pôr-se ao
           Rebuscando no mais recôndito da sua memó-  com uma voz muito lenta e pausada. Depois,  corrente, pessoalmente, da condição física do
         ria, a vítima conseguiu, pausadamente, enunciar  passados instantes, a voz tornou-se pastosa e  cadete vitimado. Por isso, mal a aula acabou,
         as ditas operações e, no seu íntimo, rezou a todos  entaramelada. Vacilou, levou uma mão à cabe-  lá se dirigiu à botica, acompanhado pelo resto
         os santos para que o mestre se contentasse com  ça, deu dois passos incertos na direcção da se-  da turma. Entretanto, a vítima protagonista da
         esse enunciado e mudasse de assunto, já que a  cretária do “TRRRIM” e estendeu-lhe a outra  cena atrás descrita, procurava finalmente re-
         explicação pormenorizada do mesmo era ma-  mão, como que a pedir ajuda. Seguidamente,  compôr-se das emoções sofridas em tão dura
         téria que, decididamente, não dominava bem,  as pernas faltaram-lhe, o corpo inclinou-se pe-  provação, tendo vindo a encontrar com baixa
         visto que nem mesmo fora ainda objecto de ex-  rigosamente para a frente, desafiando as leis  na botica um seu camarada, que assim se con-
         perimentação. E uma coisa era ler nos aponta-  da gravidade e abateu-se sobre o estrado, em-  seguira eximir, com arte e engenho, à malfada-
         mentos a explicação árida e enfadonha de opera-  purrando ainda uma das pernas da secretária  da repetição oral. Ao sentir, porém, a ruidosa
         ções essencialmente práticas, enquanto que outra,  do mestre, de onde caiu com fragor, a escassos  aproximação do “TRRRIM”, que bradava em
         completamente diferente, era a sua execução no  centímetros da sua cabeça, o globo celeste que  altos berros - “Onde está esse homem”? - este
         próprio sextante, em que a utilização da memória  nela se encontrava depositado.  cadete, cheio de temor e faltando-lhe a coragem
         visual ajudava a reter os conhecimentos necessá-  O mestre, que ao ver os passos titubeantes da  para enfrentar o mestre em tão dramática situa-
         rios. A verdade, porém, é que os santos invocados  sua vítima, começara por carregar o sobrolho,  ção, achou por bem, não fosse o diabo tecê-las,
         pela vítima, talvez atarefados com os inúmeros e  passou sucessiva e rapidamente de uma expres-  procurar por algum tempo o doce refúgio da
         variados pedidos que na altura recebiam de to-  são de indiferença ou de enfado, para outras  casa de banho, onde se trancou e de onde só
         dos os elementos da turma, não tinham mãos a  de dúvida, espanto e até temor, quando viu o  saiu quando se certificou de que já não havia
         medir e por isso não lhe acudiram. Perante algu-  braço do cadete levantar-se na sua direcção e o  mesmo “mouro na costa”!...
         ma indecisão patenteada pelo aluno, o mestre,  seu corpo começar finalmente a tombar. Nessa            Z
         implacável e severo, queria saber mais e insistia  altura levantou-se de um salto e recuou até à   Manuel M. O. Seixas Serra
         para que tais operações fossem conveniente e  parede, justamente a tempo de evitar ser atin-        CMG
         pormenorizadamente explicadas, uma a uma.  gido pelo corpo em queda. E durante alguns   NOTA DA REDACÇÃO
         Era como alguém que, vendo o inimigo atingido,  breves momentos ali ficou sem se mexer, com
         com uma ferida aberta, se deleitasse em reme-  uma expressão lívida, como se duvidasse ainda   A Revista da Armada vai inserir na rubri-
         xer na mesma, provocando dor e uma péssima  daquilo que acabara de ocorrer.  ca Estórias, episódios passados com pessoal
         sensação de desconforto.             A turma, que também parecia não acreditar  da Armada que por serem interessantes e
           Nessa altura os neurónios da vítima, já em  naquilo que se desenrolara mesmo à sua frente,  significativos  não se podem perder.
         bom estado de funcionamento, equacionaram  demorou apenas um breve instante a recompor-  A Estória 1, intitulada “O Ciclone”, foi
         calma e racionalmente a situação e selecciona-  -se do abalo sofrido. Depois, num ápice, todos  publicada na R.A. n.º 351 de MAR/02.
                                                                                      REVISTA DA ARMADA U JUNHO 2003  25
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