Page 212 - Revista da Armada
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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (1)
Tovarish
Tovarish
anda a boa moral cristã que seja- nhentos são, sistematicamente, apresentados regras de hospitalidade: se num encontro de
mos condescendentes em relação como os “maus da fita”, enquanto se glorifica velhos amigos surgir um elemento estranho,
Màs fraquezas do nosso próximo. a “luta pela liberdade” dos pequenos reinos num ambiente que, em princípio, lhe é hostil,
Confesso, porém, que existem dois defei- orientais que, com pequenas embarcações, de quem é suposto partir o primeiro gesto de
tos com os quais, quando associados, tenho ousavam afrontar naus e galeões poderosa- boa-vontade? E foi, justamente, na sequência
uma terrível dificuldade em ser tolerante: o mente armados. Face a uma visão tão par- deste raciocínio que evoquei um anterior en-
preconceito e a arrogância. cial poderemos, até, perguntar-nos se tais contro ocorrido há uns bons treze anos en-
Pois foram, precisamente, esses os termos autores teriam uma atitude tão paternalista tre a nossa “Sagres” e um dos seus “irmãos
que me ocorreram quando, ao folhear um e tão indulgente para com os “combaten- gémeos”, o veleiro russo Tovarish.
antigo número de uma conhecida revista tes da liberdade” que, um pouco por todo Estávamos na nossa viagem de instrução
naval americana, encontrei um relato de o Mundo, exprimem o seu heroísmo em do 1º ano e no amanhecer do segundo dia
um convívio realizado nos “bons velhos atentados suicidas contra os símbolos do da nossa estadia no porto de Marselha quan-
tempos” da Guerra Fria, entre os marinhei- poder americano. Creio que hoje os termos do, ao subir ao tombadilho para a habitual
ros da STANAVFORLANT e os de uma for- utilizados são “cobarde”, “terrorista” e “as- baldeação matinal, vimos, atracado à nos-
ça naval soviética, cujos navios se tinham sassino”. Estarei enganado? sa popa, um navio igualzinho ao nosso, em
encontrado no porto de Helsínquia. Falava, Não pense o paciente leitor que me move cujo castelo se apinhavam, embasbacados,
então, esse relato no clima de fraternidade alguma animosidade contra o povo ameri- uns trinta jovens marujos fardados “à sovi-
e exemplar camaradagem existente entre a cano, cujo percurso histórico muito admiro ética”. Claro que nasceu, logo ali, uma in-
marinhagem ocidental e no seu contraste e entre o qual conto alguns bons e sinceros controlável curiosidade que só começou a
com a reserva, a antipatia e a desconfian- amigos, mas há certas “atitudes de raça” que ser satisfeita quando, ao serem concedidas
ça por parte dos marinheiros soviéticos. E fazem perder as estribeiras ao mais santo dos licenças, um pequeno grupo de cadetes lu-
dei por mim a sussurrar entre dentes “Não mortais! Veio, pois, este extenso parêntesis sos se apresentou diante de um atarantado
pode ser verdade! Eu sei que as coisas não na sequência da minha indignação face a plantão russo a perguntar se podiam visitar o
são assim!”. uma atitude preconceituosa em relação aos navio. Um pouco engasgado no seu inglês,
Claro que tal descrição não me surpre- representantes de um povo que, na altura, lá nos respondeu que não sabia mas que ia
endeu numa publicação onde, nos artigos se declarava no lado oposto da barricada. indagar junto dos seus superiores. Dali a
de História Naval, os portugueses de Qui- Basta começarmos pelas mais elementares pouco surgia à prancha o próprio Imediato
30 JUNHO 2003 U REVISTA DA ARMADA