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DIVAGAÇÕES DE UM MARUJO (1)



                                         Tovarish
                                          Tovarish






                anda a boa moral cristã que seja-  nhentos são, sistematicamente, apresentados  regras de hospitalidade: se num encontro de
                mos condescendentes em relação  como os “maus da fita”, enquanto se glorifica  velhos amigos surgir um elemento estranho,
         Màs fraquezas do nosso próximo.  a “luta pela liberdade” dos pequenos reinos  num ambiente que, em princípio, lhe é hostil,
         Confesso, porém, que existem dois defei-  orientais que, com pequenas embarcações,  de quem é suposto partir o primeiro gesto de
         tos com os quais, quando associados, tenho  ousavam afrontar  naus e galeões poderosa-  boa-vontade? E foi, justamente, na sequência
         uma terrível dificuldade em ser tolerante: o  mente armados. Face a uma visão tão par-  deste raciocínio que evoquei um anterior en-
         preconceito e a arrogância.        cial poderemos, até, perguntar-nos se tais  contro ocorrido há uns bons treze anos en-
           Pois foram, precisamente, esses os termos  autores teriam uma atitude tão paternalista  tre a nossa “Sagres” e um dos seus “irmãos
         que me ocorreram quando, ao folhear um  e tão indulgente para com os “combaten-  gémeos”, o veleiro russo Tovarish.
         antigo número de uma conhecida revista  tes da liberdade” que, um pouco por todo   Estávamos na nossa viagem de instrução
         naval americana, encontrei um relato de  o Mundo, exprimem o seu heroísmo em  do 1º ano e no amanhecer do segundo dia
         um convívio realizado nos “bons velhos  atentados suicidas contra os símbolos do  da nossa estadia no porto de Marselha quan-
         tempos” da Guerra Fria, entre os marinhei-  poder americano. Creio que hoje os termos  do, ao subir ao tombadilho para a habitual











































         ros da STANAVFORLANT e os de uma for-  utilizados são “cobarde”, “terrorista” e “as-  baldeação matinal, vimos, atracado à nos-
         ça naval soviética, cujos navios se tinham  sassino”. Estarei enganado?  sa popa, um navio igualzinho ao nosso, em
         encontrado no porto de Helsínquia. Falava,   Não pense o paciente leitor que me move  cujo castelo se apinhavam, embasbacados,
         então, esse relato no clima de fraternidade  alguma animosidade contra o povo ameri-  uns trinta jovens marujos fardados “à sovi-
         e exemplar camaradagem existente entre a  cano, cujo percurso histórico muito admiro  ética”. Claro que nasceu, logo ali, uma in-
         marinhagem ocidental e no seu contraste  e entre o qual conto alguns bons e sinceros  controlável curiosidade que só começou a
         com a reserva, a antipatia e a desconfian-  amigos, mas há certas “atitudes de raça” que  ser satisfeita quando, ao serem concedidas
         ça por parte dos marinheiros soviéticos. E  fazem perder as estribeiras ao mais santo dos  licenças, um pequeno grupo de cadetes lu-
         dei por mim a sussurrar entre dentes “Não  mortais! Veio, pois, este extenso parêntesis  sos se apresentou diante de um atarantado
         pode ser verdade! Eu sei que as coisas não  na sequência da minha indignação face a  plantão russo a perguntar se podiam visitar o
         são assim!”.                       uma atitude preconceituosa em relação aos  navio. Um pouco engasgado no seu inglês,
           Claro que tal descrição não me surpre-  representantes de um povo que, na altura,  lá nos respondeu que não sabia mas que ia
         endeu numa publicação onde, nos artigos  se declarava no lado oposto da barricada.  indagar junto dos seus superiores. Dali a
         de História Naval, os portugueses de Qui-  Basta começarmos pelas mais elementares  pouco surgia à prancha o próprio Imediato

         30  JUNHO 2003 U REVISTA DA ARMADA
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