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A MARINHA DE D. MANUEL (34)



         Afonso de Albuquerque: partida para o Índico
          Afonso de Albuquerque: partida para o Índico



               ascensão de Afonso de Albuquerque  Seguramente, a peste de Lisboa levantou  terra praticamente desconhecida dos por-
               à posição de governador da Índia,  grandes dificuldades à preparação da  tugueses. Provavelmente, só Afonso de
         Aem 1509, foi marcada pela queda do  esquadra e uma delas foi o próprio recruta-  Albuquerque desesperava de todos estes
         prestígio de D. Francisco de Almeida, apesar  mento de pessoal capaz, obrigando a recor-  atrasos, ansioso que estaria de seguir para
         da importância da sua vitória em Diu. Na  rer às masmorras reais para compensar a  Socotorá, atirar-se às naus de Meca e deitar
         verdade todo o processo de transmissão de  falta dos marinheiros experientes e dos vo-  um olho na entrada do Golfo Pérsico.
         poderes está envolvido por incidentes                                        Em 1506 a posição dos portugueses
         que revelam, sobretudo, a enorme                                           no que diz respeito ao domínio do
         mágoa de D. Francisco que – devemos                                        Índico oferecia poucas dúvidas, como
         dizê-lo – criou dificuldades de vária                                      já tivemos ocasião de afirmar. De um
         ordem. Todavia, conhecemos poucos                                          modo geral havia que combater todos
         factos concretos incontestáveis e sub-                                     os navios que demandavam o Mar
         sistindo demasiadas dúvidas sobre o                                        Vermelho para comerciarem espe-
         que podiam ter sido as circunstâncias                                      ciarias com o Mediterrâneo, sendo
         do momento, não me parecendo                                               igualmente claras as cedências ou
         correcto julgar o comportamento de                                         intransigências noutras rotas comer-
         D. Francisco como franca desobediên-                                       ciais que faziam parte do mundo
         cia ou como traição aos deveres a que                                      económico fervilhante e equilibrado
         estava obrigado. Deveres para com                                          do Oriente. Estou em crer que idéia de
         D. Manuel, naturalmente, seu sobera-                                       cruzada – sem querer eliminá-la em
         no e senhor, a quem devia absoluta                                         absoluto, na medida em que as moti-
         lealdade e obediência. Aliás, não é de                                     vações religiosas sempre tiveram um
         afastar de todo a hipótese de que                                          enorme peso em tudo o que liga os
         alguns que o viam cair em desgraça                                         homens à guerra e os submete ao risco
         tenham aproveitado para lhe aumen-                                         de vida –  persistia na linguagem ofi-
         tar o desgosto. O que me parece                                            cial, mais como argumento para con-
         incontestável – julgando as medidas                                        sumo europeu, do que como razão
         de ambos os representantes por-                                            efectiva de uma guerra no Oriente.
         tugueses na Índia – é que a substitu-                                      Muçulmanos ou outros eram inimi-
         ição de D. Francisco de Almeida por                                        gos ou aliados em função de um
         D. Afonso de Albuquerque não re-  Golfo Arábico – 1595.                    único objectivo: as vantagens que
         presentou uma alteração de fundo na                                        ofereciam para o domínio do Índico,
         estratégia portuguesa para o Oceano Índico.  luntários aventureiros que sonhavam com  com uma perspectiva económica que obriga-
         Mas este será um assunto para analisar a  as riquezas da Índia. Para além disso, a  va a um raciocínio estratégico naval. Por isso
         seu tempo. Por ora falarei da forma como  viagem não correu muito bem. Uma defi-  a esquadra de Tristão da Cunha sai de
         Albuquerque volta a entrar em cena no  ciente volta do mar no Atlântico Sul não  Moçambique e entra Melinde com toda a
         Oriente e das primeiras acções a que está  permitiu vencer o Cabo de Santo  pompa e ar de festa para saudar o rei local,
         ligado.                            Agostinho (na costa brasileira) e obrigou a  mas imediatamente a seguir ataca Oja (ou
           Afonso de Albuquerque fazia parte da  voltar à Guiné, para retomar a rota  Angoja) e Barawa, que foi saqueada durante
         esquadra que saiu em 1506, comandada  necessária (já falámos nesta dificuldade que  três dias. Em Abril de 1507 chegam a
         por Tristão da Cunha, levando a missão  tem a ver com o sistema de ventos e cor-  Socotorá com propósitos semelhantes, e veri-
         específica de se afastar desse comando e  rentes nessa região), de forma que só em  ficam que os materiais trazidos de Lisboa
         ficar “de armada” na entrada do Mar  Dezembro Tristão da Cunha chegou a  eram desnecessários para a construção de
         Vermelho, logo que fosse concluída a  Moçambique. Passou à vista das ilhas que  qualquer fortaleza: no local já existia uma
         construção de uma fortaleza  na ilha de  viriam a receber o seu nome (Ilhas de  bela e segura construção em pedra, defen-
         Socotorá. Os relatos dos cronistas não são  Tristão da Cunha), por ser a primeira vez  dida pelo próprio filho do Sheik de Fartak,
         claros quanto ao número de navios dessa  que foram avistadas, mas essa derrota  que estava a disposto a morrer no seu posto.
         esquadra (que deve ter oscilado entre 15 e  levou-o demasiado para sul (37 a 38º S),  A batalha era inevitável e Albuquerque teve
         16) e, quanto à data exacta da partida,  expondo os navios aos temporais próprios  ocasião de mostrar os seus próprios dotes
         existem versões que oscilam entre dia 6  da época e a frios inclementes que di-  de chefe militar, ao conduzir os seus homens
         de Março, dia 6 de Abril e 18 de Abril.  zimaram uma parte da tripulação. A  de forma ardilosa, permitindo surpreender
         Diz-nos Banha de Andrade que terá sido  esquadra dispersou-se quase completa-  os defensores com uma manobra envol-
         prevista para 6 de Março, sendo adiada  mente, sabendo-se que a nau Judia, coman-  vente. A fortaleza foi consagrada a São
         para o mês seguinte, por causa da peste  dada por João Gomes de Abreu, fugindo  Miguel e entregue a Afonso de Noronha.
         que assolou Lisboa naquela altura. Penso  demasiado para leste, fez a primeira abor-  Albuquerque ficou com seis navios para
         eu que poderá ter sido entre 5 e 6 de  dagem portuguesa à costa oeste de  cumprir a sua missão, e, em Agosto do
         Abril, ou entre 18 e 19 do mesmo mês  Madagáscar, de onde trouxe informações  mesmo ano, Tristão da Cunha partia, final-
         dado que a Páscoa desse ano foi a 12 de  que tentaram o Capitão-Mor a explorar  mente, para Índia.
         Abril, e haver uma associação dessa parti-  melhor essa região. Já estava perdida a
         da ao Domingo de Ramos ou às oitavas  monção desse ano, de forma que sobrava             J. Semedo de Matos
         de Páscoa (dia 19).                tempo para tentar saber algo sobre uma                         CFR FZ
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • MARÇO 2003  17
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