Page 96 - Revista da Armada
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vador”, fechado à inovação, excessivamente cida dos Matemáticos, e tratada somente por não recusar em absoluto os paradigmas tra-
balizado em critérios empíricos, onde se mo- emgenhos groseiros e pouco polidos[...].” (18) dicionais e o saber «humanista», não teve
viam os pilotos e outros agentes com res- Vivendo num período muito particular, receio “de sair da opinião comum”, e ao fazê-
ponsabilidades na execução das viagens marí- dominado por três poderosas correntes intelec- -lo arvorou-se como um dos elos que fazem a
timas. Eis outra das razões que levou certa- tuais: a Tradição Escolástica, o Humanismo, a ponte entre as navegações portuguesas e a re-
mente ao enquistamento científico e técnico moderna corrente de pensamento propor- volução científica do século XVII.
do país impedindo-o de participar de forma cionada pelas navegações, D. João de Castro
activa na revolução científica e técnica do revê muitos dos pressupostos em que se Carlos Manuel Valentim
século XVII. baseava o pensamento dominante, não se 2TEN TSN
O roteiro de Goa a Diu, outro dos textos afastando, porém, de uma certa visão orga-
científicos de D. João de Castro, contem uma nicista do Mundo, bebida na “ortodoxia” Notas
descrição geográfica muito completa da Costa aristótélica – o paradigma predominante. (1) Cabe aqui, no entanto, fazer justiça a dois eventos,
de Cambia. Aí são descritos os rios, as costas, a Por esta altura desponta na sociedade por- que constaram do programa da Comissão, directamente
relacionados com a memória de D. João de Castro: a
fauna, os portos mais úteis para a navegação, a tuguesa um clima de confronto entre defen- instituição de um prémio com o nome do navegador; e
melhor forma de navegar e captar os uma Exposição que teve por tema as
pontos conspícuos em terra. “Tapeçarias de D. João de Castro”, realizada
No Roteiro do Mar Roxo, conce- em 1995 no Museu Nacional de Arte Antiga.
Tais eventos não escondem contudo uma
bido durante uma expedição ao realidade pobre.
Canal do Suez volta a descrever (2) Com edição crítica e estudos de
fenómenos físicos e geográficos com Armando Cortesão e Luís de Albuquerque.
uma estonteante lucidez. Vários (3) J. Vicente Gonçalves, “Passos de Pedro
episódios, por si só, demonstram Nunes ao Serviço do Rei” In Memórias da
Academia das Ciências de Lisboa, Classe de
uma inovação na abordagem da Ciências, Tomo XXVI, 1984/85, pág. 28. Não
natureza e do seu estudo. O exemplo podemos deixar de agradecer ao Sr. Profes-
mais pertinente, durante a sua sor Dr. Henrique Leitão esta sugestão biblio-
viagem ao Mar Vermelho (Roxo), é a gráfica.
(4) Este episódio relata-nos o seu biógrafo
explicação que encontra para a cor mais citado, Jacinto Freire de Andrada, Vida
deste Mar. “O modo que tiue pera de D. João de Castro, Quarto Vice-Rei da
alcamçar este segredo foi sorgir Índia, Lisboa, Agência Geral das Colónias,
muitas vezes em çima das restimgas 1940, pág. 17.
(5) D. João de Castro, “Roteiro de Goa a
omde me o mar pareçia vermelho, e Diu” In Obras Completas de D. João de
mamdar mergulhadores que me Castro, Coimbra, Academia Internacional da
trouxesem as pedras que jaziam no Cultura Portuguesa, Edição Crítica de
fumdo;[...] omde acomteçia que Armando Cortesão e Luís de Albuquerque,
todas, ou a maior parte das pedras 1971 Vol. II, pág. 13.
(6) Leonardo Nunes, Crónica de D. João
que arrancauam, eram de coral ver- de Castro, Lisboa, Alfa, 1989, comentários de
melho e outras de coral cuberto de Luís de Albuquerque, pág.8
musgo alaramjado [...] (15). Através (7) A grande vitória de Diu ficou relatada
desta passagem constata-se que o em diversas crónicas e há bem pouco tempo,
eminente navegador já se situa no no início da década de 90 do Século XX,
foram descobertas tapeçarias em Viena que
seio duma nova mentalidade, que D. João de Castro – Museu Militar – Lisboa. documentam as façanhas militares da família
em muito difere da coeva, surgindo Falcão Trigoso – Óleo sobre tela. Castro em Diu. Ainda não se descobriu quem
como intérprete de um “novo mun- terá encomendado tão valioso trabalho.
(8) A Profesora Suzanne Daveau, “O Tratado da
do” científico, prestes a nascer. sores e críticos da cultura clássica. Uma ati- Esfera atribuído a D. João de Castro: dúvidas e significa-
A primeira viagem de D. João de Castro à tude mais céptica em relação ás navegações e do” In Cadernos Históricos, Lagos, 1993, pp. 153-156,
Índia é de uma importância fundamental, em a crença na absoluta necessidade do conheci- tem vindo a demonstrar que estas obras não foram con-
termos culturais e científicos, para podermos mento antigo sobrevive em humanistas forte- cebidas por Castro.
entender os seu percurso biográfico. Entre mente influenciados pela realidade italiana: (9) V. A. Teixeira da Mota, Evolução dos Roteiros
1538 e 1541, concebe três importantes António Ferreira, Sá de Miranda, Francisco de Portugueses Durante o século XVI, Coimbra, Junta de
Investigações do Ultramar, 1969, Separata XXXIII, pág. 16.
roteiros e corresponde-se assiduamente com Holanda e o estrangeiro George Buchanan; a (10) Correspondência e Documentos de D. João de
D. João III e o Infante D. Luís acerca das suas elevação dos feitos dos “Modernos” a par da Castro In Obras Completas de D. João de Castro, Ed. Cit.,
descobertas, da administração ultramarina, da defesa da “ciência” herdada dos antigos, que Vol. III, pág. 12.
(11) V. Avelino Teixeira da Mota, “D. João De Castro,
náutica, da “Carreira da Índia” e de outros possibilitara a empresa descobridora, era uma Navegador e Hidrógrafo” In Anais do Clube Militar
assuntos que diziam respeito à organização do opinião defendida intransigentemente por Naval, N.º Especial, 1997, pág. 30
Império português. (16) homens com formação humanista, mas que (12) D. João de Castro, “Roteiro de Lisboa a Goa” in
D. João de Castro pensava na melhor forma estavam em contacto com o meio náutico e op. cit., lo. Cit. pág. 244.
de prestar serviço ao Infante D. Luís e ao Rei, mercantil - marítimo: D. João de Castro (nave- (13) V. Luís Filipe Barreto, Os Descobrimentos E A
na “Arte de Cosmografia”. Da sua escrita gador e Vice-rei da Índia), João de Barros Ordem Do Saber, Uma análise sociocultural, Lisboa,
Gradiva, 1987, pp. 46-47.
depreende-se que havia um forte empenha- (feitor da Casa da Índia), Padre Fernando de (14) J. Borges de Macedo, Livros Impressos em Portugal
mento pessoal, tal como da parte do príncipe, Oliveira (piloto e tratadista naval) e Pedro no século XVI, interesse e formas de mentalidade,
em melhorar instrumentos de medida Nunes (Cosmógrafo–mór); uma terceira Separata do Centro Cultural Português, Tomo IX, pág. 198.
(15) D. João de Castro, “Roteiro do Mar Roxo”, In Obras
astronómica, em inovar e aperfeiçoar as posição, mais radical, que se regozijava com Compeltas de D. João de Castro, Ed. Cit., Vol. II pág. 370
condições da navegação, e de outras ciências os feitos das navegações foi apanágio de (16) V, Luís Filipe Barreto, A Ordem do saber No
a ela ligadas. O grau de exigência era elevado. Garcia da Orta (farmacêutico) e Duarte Universo Cultural dos Descobrimentos Portugueses,
: “ [...] me fis noutra uolta, e propus em minha Pacheco Pereira (navegador). Dissertação de Doutoramento em História apresentada à
uontade de ocupar o pensamento em partes Preocupado com as condições do seu co- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, poli-
de que os imperitos nauegantes pudessem tirar nhecimento, com o papel dos sentidos na copiada, Vol. II, pág., 454.
(17) D. João de Castro., “Roteiro de Goa a Diu”,
algum fruto.” (17) Para D. João de Castro a observação, apostado numa nova metodolo- Prólogo, in op. cit., Vol. II, 1971, pág. 10.
navegação, “arte” tão útil ao reino, era “esque- gia epistémica, D. João de Castro, apesar de (18) Idem, Ibidem.
22 MARÇO 2003 • REVISTA DA ARMADA