Page 356 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (37)
O rapaz que riscou o céu…
O rapaz que riscou o céu…
…um poema do Alfeite
…um poema do Alfeite
Costumam às vezes os altos feitos ha- tude do Grumete avancei decidido: cla, sem nexo aparente, aquele exame em que
ver começo per tais pessoas, cujo azo ne- -Para onde está a olhar? - Perguntei, sentin- me perdi, a solidão do pôr-do-sol, a bordo,
nhum comum povo podia cuidar que per do-me no papel de uma velha alcoviteira, im- contra o azul de um mar distante e agora ina-
eles viesse… paciente por conhecer a vida dos outros, para cessível, a triste pena do que ficou por dizer,
In Crónicas de Fernão Lopes, 1434 a retalhar em pedacinhos pequeninos e gastos, aquela namorada que não me quis… Lá es-
que preenchem o vazio na sua própria vida. tava, também, o gosto acre na cara do cigano
i um homem sentado à beira da água, Imperturbável e com ar digno, o rapaz a quem recusei cama, por falta de vaga, na-
no Alfeite, num pequeno muro que atirou-me com uma frase, que ecoou por quele Agosto longínquo e a culpa, que sem
Vtodos conhecem e de tanto conhecer, dentro, como se de uma verdade intempo- culpa, ainda carrego por não saber o que lhe
provavelmente pouco nele reparam. Tratava- ral se tratasse: aconteceu….Mas havia mais, a alegria infantil
-se de um moço franzino, que de costas mais -Olhe, estou aqui a riscar o céu! no dia em que a avó me deixou guiar a car-
parecia uma estátua, tal era a quietude do Fiquei perplexo. Não compreendi, nem roça com a mula teimosa, o embaraço pega-
azul da sua farda limpa, contra o azul, mais perguntei mais uma palavra. Aceitei o desa- joso dos beijos dados pelas tias da província
claro, do céu nesse dia. Era hora de almo- fio e sentei-me ali. O tempo passou e eu ali no dia do casamento, exuberantes nos seus
ço. Já havia chegado a calma das tardes de sentado até, que por qualquer fenómeno mís- bigodes por aparar, chegou também a gaiolita
Verão. Parei, eu também, nem sei bem se foi tico, comecei a sentir imagens de um tempo dos pássaros e a árvore do visco de tardes fe-
pela imobilidade patológica do homem, se passado. É verdade, ali estavam, numa mes- lizes, sem tempo…naquele tempo a que cha-
foi a procura contínua mamos infância…
pelo sabor, oculto, que Parei, subitamen-
a vida tem… te, assim que desviei
Aproximei-me. Era o olhar do céu. Pare-
apenas um 2º Grume- cia que naquele dia,
te. Comentei então, aquele céu era uma
em tom circunstan- janela, indiscreta, na
cial, como se estava nossa mente, para
bem ali, naquele dia, tudo o que somos.
naquela hora. Obtive Voltei a olhá-lo, lenta-
uma resposta quase la- mente e a medo, para
cónica: um “pois está”, logo sentir, os calções
seco e sóbrio, do rapaz novos no primeiro dia
que continuou a olhar de aulas, no pulso o re-
no vazio…Abeirei-me lógio velho que o meu
mais um pouco, para pai me deu na terceira
tentar perceber qual classe, pouco depois
seria a sua fonte de in- era o cheiro do formol
teresse e olhei a água na aula de anatomia
apenas para observar patológica. Só quando
um cardume de taí- revi os olhos, fundos,
nhas de má fama, que da morte, no homem
sob a água dançavam esquelético com leu-
ao som de uma valsa cemia, naquela enfer-
lenta, silenciosa, que maria do Hospital de
só elas podiam ouvir… Santa Maria, decidi
Naquela hora de acal- parar novamente e le-
mia, não descortinei vantei-me por momen-
qualquer som ou acti- tos. Afinal naquele céu
vidade particular nos estava tudo lá. Estava lá
navios, que por ali per- tudo o que sou eu…
to repousavam, de tra- Passado algum tem-
balhos pesados de ou- po foi o Grumete que
tras tantas viagens, por me olhou com ar estra-
mares revoltos, que não nho. Não é para me-
aquele, que aparentava nos, ali estava eu pa-
a mansidão de um len- rado, quedo e mudo.
çol esticado a secar, no Por momentos temi,
calor suave… que ele conseguisse ler
Num esforço para os meus pensamentos,
tentar perceber a quie- conseguisse ler as emo-
30 NOVEMBRO 2004 U REVISTA DA ARMADA