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HISTÓRIAS DA BOTICA (37)



         O rapaz que riscou o céu…
         O rapaz que riscou o céu…

               …um poema do Alfeite
               …um poema do Alfeite



           Costumam às vezes os altos feitos ha-  tude do Grumete avancei decidido:  cla, sem nexo aparente, aquele exame em que
         ver começo per tais pessoas, cujo azo ne-  -Para onde está a olhar? - Perguntei, sentin-  me perdi, a solidão do pôr-do-sol, a bordo,
         nhum comum povo podia cuidar que per  do-me no papel de uma velha alcoviteira, im-  contra o azul de um mar distante e agora ina-
         eles viesse…                       paciente por conhecer a vida dos outros, para  cessível, a triste pena do que ficou por dizer,
                      In Crónicas de Fernão Lopes, 1434  a retalhar em pedacinhos pequeninos e gastos,  aquela namorada que não me quis… Lá es-
                                            que preenchem o vazio na sua própria vida.   tava, também, o gosto acre na cara do cigano
              i um homem sentado à beira da água,   Imperturbável e com ar digno, o rapaz  a quem recusei cama, por falta de vaga, na-
              no Alfeite, num pequeno muro que  atirou-me com uma frase, que ecoou por  quele Agosto longínquo e a culpa, que sem
         Vtodos conhecem e de tanto conhecer,  dentro, como se de uma verdade intempo-  culpa, ainda carrego por não saber o que lhe
         provavelmente pouco nele reparam. Tratava-  ral se tratasse:          aconteceu….Mas havia mais, a alegria infantil
         -se de um moço franzino, que de costas mais   -Olhe, estou aqui a riscar o céu!  no dia em que a avó me deixou guiar a car-
         parecia uma estátua, tal era a quietude do   Fiquei perplexo. Não compreendi, nem  roça com a mula teimosa, o embaraço pega-
         azul da sua farda limpa, contra o azul, mais  perguntei mais uma palavra. Aceitei o desa-  joso dos beijos dados pelas tias da província
         claro, do céu nesse dia. Era hora de almo-  fio e sentei-me ali. O tempo passou e eu ali  no dia do casamento, exuberantes nos seus
         ço. Já havia chegado a calma das tardes de  sentado até, que por qualquer fenómeno mís-  bigodes por aparar, chegou também a gaiolita
         Verão. Parei, eu também, nem sei bem se foi  tico, comecei a sentir imagens de um tempo  dos pássaros e a árvore do visco de tardes fe-
         pela imobilidade patológica do homem, se  passado. É verdade, ali estavam, numa mes-  lizes, sem tempo…naquele tempo a que cha-
         foi a procura contínua                                                                mamos infância…
         pelo sabor, oculto, que                                                                 Parei, subitamen-
         a vida tem…                                                                           te, assim que desviei
           Aproximei-me. Era                                                                   o olhar do céu. Pare-
         apenas um 2º Grume-                                                                   cia que naquele dia,
         te. Comentei então,                                                                   aquele céu era uma
         em tom circunstan-                                                                    janela, indiscreta, na
         cial, como se estava                                                                  nossa mente, para
         bem ali, naquele dia,                                                                 tudo o que somos.
         naquela hora. Obtive                                                                  Voltei a olhá-lo, lenta-
         uma resposta quase la-                                                                mente e a medo, para
         cónica: um “pois está”,                                                               logo sentir, os calções
         seco e sóbrio, do rapaz                                                               novos no primeiro dia
         que continuou a olhar                                                                 de aulas, no pulso o re-
         no vazio…Abeirei-me                                                                   lógio velho que o meu
         mais um pouco, para                                                                   pai me deu na terceira
         tentar perceber qual                                                                  classe, pouco depois
         seria a sua fonte de in-                                                              era o cheiro do formol
         teresse e olhei a água                                                                na aula de anatomia
         apenas para observar                                                                  patológica. Só quando
         um cardume de taí-                                                                    revi os olhos, fundos,
         nhas de má fama, que                                                                  da morte, no homem
         sob a água dançavam                                                                   esquelético com leu-
         ao som de uma valsa                                                                   cemia, naquela enfer-
         lenta, silenciosa, que                                                                maria do Hospital de
         só elas podiam ouvir…                                                                 Santa Maria, decidi
         Naquela hora de acal-                                                                 parar novamente e le-
         mia, não descortinei                                                                  vantei-me por momen-
         qualquer som ou acti-                                                                 tos. Afinal naquele céu
         vidade particular nos                                                                 estava tudo lá. Estava lá
         navios, que por ali per-                                                              tudo o que sou eu…
         to repousavam, de tra-                                                                  Passado algum tem-
         balhos pesados de ou-                                                                 po foi o Grumete que
         tras tantas viagens, por                                                              me olhou com ar estra-
         mares revoltos, que não                                                               nho. Não é para me-
         aquele, que aparentava                                                                nos, ali estava eu pa-
         a mansidão de um len-                                                                 rado, quedo e mudo.
         çol esticado a secar, no                                                              Por momentos temi,
         calor suave…                                                                          que ele conseguisse ler
           Num esforço para                                                                    os meus pensamentos,
         tentar perceber a quie-                                                               conseguisse ler as emo-

         30  NOVEMBRO 2004 U REVISTA DA ARMADA
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