Page 114 - Revista da Armada
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Uma perda irreparável
nesperadamente faleceu, no dia 7 de Março passado, o Co- venção mais importante na Revista foi na área da ilustração, onde
mandante Raúl de Sousa Machado, um dos fundadores da o seu traço inconfundível e de uma enorme simplicidade preen-
IRevista da Armada em 1971 e desde essa data seu colabora- che mais de 700 páginas. É um acervo notável onde não é possível
dor permanente. fazer escolhas, pois tudo o que desenhou é de enorme qualidade.
É dele a autoria da capa, que ficou para a posteridade, do pri- Note-se que muitas vezes e não querendo tirar o mérito aos traba-
meiro número da nossa Revista onde, com grande simplicidade, lhos escritos, a ilustração do Comandante Sousa Machado com a
fez representar os oficiais, sargentos, praças, funcionários civis e sua enorme sensibilidade, o seu espírito crítico, o seu humor, por
ainda os fuzileiros, um navio de guerra e o mar, tendo presente vezes mordaz e o seu humanismo, acabava por ser de vital impor-
o principal objectivo que o Almiran- tância para a compreensão do texto e até
te Manuel Pereira Crespo, Ministro da para a sua complementaridade.
Marinha de então, fixou para a Revista Para além de ilustrar os seus próprios
– o fortalecimento do espírito de corpo e o artigos e dos desenhos que acompanha-
incremento da camaradagem entre todos os vam as poesias, registe-se as séries do Al-
que servem na Marinha. mirante Silva Braga, com 200 ilustrações,
Conheci o Comandante nos finais dos os desenhos efectuados para os editoriais
anos 50 na Escola Naval, onde ele era o e outras peças do Almirante Malheiro do
instrutor de armamento portátil. Capitão- Vale e nos últimos tempos as 38 gravu-
tenente, recém promovido, aparentava ras para as “Histórias da Botica” do Doc e
um aspecto jovem, que manteve ao lon- ainda 10 para as “Divagações de um Ma-
go dos tempos, quando comparado com rujo” do Comandante Moreira Silva.
outros camaradas seus contemporâneos Mas voltando um pouco atrás, não po-
e já naquele tempo impressionava a sua demos esquecer o Cabo Pézinhos, criação
grande aptidão para o desenho. Dava do Almirante Malheiro do Vale que na
gosto ver como com um simples peda- Revista da Armada nº 25 de Outubro de
ço de giz no vetusto quadro de ardósia 1973 se definia assim: Sou um velho cabo
conseguia, através de um rebatimento, às manobra quase pertenço ao passado e sou dos
vezes torcido, ou de um pequeno truque, poucos que usa o cabelo curto e o boné na ca-
mostrar como actuavam, na realidade, os beça. Chamam-me Pézinhos, não sei porquê.
diversos mecanismos de uma arma. Será por usar sapatos nº 46? Diz a familia
Na sua vida de Marinheiro a Arte que quando eu estou em terra muito tempo
acompanhou-o sempre. Embarcado, é começo a ficar rabugento e a implicar por
notável uma aguarela onde se destaca tudo e por nada… e por aí fora.
a grande árvore no porto de Dilí à qual O Cabo Pézinhos e a suas cartas man-
os navios amarravam de popa, trabalho tiveram-se muito tempo nas páginas da
executado no tolda do Aviso “Gonçalves Revista, mas na minha opinião quem o
Zarco” em 1945, após o fim da II Guerra Mundial no Pacífico. Na consagrou foi na realidade o Comandante Sousa Machado com o
Escola de Artilharia Naval ilustrou vários manuais escolares e quan- seu desenho. Assim, ao longo desses anos, nós na Marinha, ha-
do na Capitania dos Portos de Cabo Verde e na Defesa Marítima da bituámo-nos à sua figura nas mais diversas situações e mesmo a
Guiné, leccionou nos liceus locais e aí, veiculou os seus profundos morte do Almirante Malheiro do Vale não acabou com o popular
conhecimento artisticos. Cabo porque o Comandante Sousa Machado lhe dava vida. Agora,
Como afirmou em entrevista à Revista da Armada, foi sempre um infelizmente o Cabo Pézinhos só irá reviver na nossa memória.
autodidata, apesar de alguns contactos esporádicos com artistas de re- Uma referência ainda ao projecto da criação oficial da figura de
nome. Executou todas as disciplinas das Belas Artes com execpção da Pintor de Marinha com um estatuto um tanto ou quanto semelhante
arquitectura. Na pintura trabalhou a aguarela, o goache, o acrilico, o ao que existe na Marinha Francesa. Esta iniciativa do Presidente da
óleo, a gravura de água-forte, o pastel, o linóleo, o lápis e a pena, nas Academia de Marinha, que contou com a concordância dos restan-
quais se repartiu como ilustrador de revistas e postais quase sempre tes membros da Comissão Cultural e de mim próprio, para além
no campo naval. Pintou retratos, e para falar só nos mais conhecidos, de incentivar os artistas a pintarem o mar e tudo o que o envolve,
destaco os dos Comandantes Aragão e Oliveira e Carmo para o Mu- destinava-se essencialmente a consagrar o Comandante Sousa Ma-
seu de Marinha, do Conde de S. Vicente para a Escola Naval e do Co- chado que seria naturalmente, após a aprovação dos Estatutos, o
mandante Conceição Silva para o Planetário Calouste Gulbenkian. Foi Pintor de Marinha nº1. Falecido este distinto oficial julgo que não se
autor de muitos cartões para azulejos, de cartazes publicitários e ainda justifica aquela designação. Ele, estou certo passará à História não
de ex-libris. Na escultura ficaram famosos, entre outros, os bustos de como Pintor de Marinha nº1 mas sim como o Pintor da Marinha.
Henrique Seixas na Messe de Cascais, da Raínha D. Amélia no Institu- Evoquemos pois o Grande Artista Plástico que foi o Comandante
to de Socorros a Naufragos, do Almirante Pereira Crespo em S. João do Sousa Machado que, com o seu traço inconfundível, a enorme cultura
Estoril e do Tenente-General Bartolomeu da Costa junto do Dique do naval de quem serviu devotadamente a Marinha toda uma vida, deixou
Arsenal. Na medalhistica são ínumeros os seus trabalhos. Refiro ape- uma obra imensa, que representa para nós marinheiros, um elo da nossa
nas a moeda comemorativa da reconstruçãoda Fragata “D. Fernando II própria identidade. Nós revemo-nos realmente nos seus trabalhos!
e Glória” cuja venda reverteu para aquela obra. Não querendo acreditar no estatuto de insubstituível julgo que
E na Revista da Armada durante 34 anos o que fez o Coman- nesta hora, o Comandante Raúl de Sousa Machado é mesmo in-
dante Sousa Machado? substituível.
Escreveu nas secções de Numismática, Filatelia e Assuntos Afri- Z
canos. Redigiu histórias e episódios marítimos – e no “Quarto de O Director
Folga”, com anedotas e passatempos, sempre referidos a motivos Luís A. Roque Martins
navais. Era ainda responsável pela Bibliografia, mas a sua inter- CALM EMQ
4 ABRIL 2005 U REVISTA DA ARMADA