Page 140 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (39)
A Viagem do Oficial e Artista
A Viagem do Oficial e Artista
A so. Uma das ocasiões que o médico mais Oficial Artista não se deu conta do egoísmo
Encontram-se muitas vezes depois dis-
Acho ainda, em jeito de lamento, que o
história que aqui trago não se conta
em palavras, porque essas são – es-
tou certo – muito limitadas face aos apreciou, assim o confessou, foi um almo-
sentimentos que pretendemos, do fundo do ço na Força de Fuzileiros há já algum tem- da sua partida. É que ao contrário da maio-
ria, vai deixar um vazio que abrange toda
ser, transmitir. Esta é, contudo, mais uma po…Não falavam muito das histórias pro- a Marinha. E, claro, não adianta ligar-lhe,
história real, em cuja trama o leitor atento priamente ditas, acredito eu (que senti tudo ou escrever-lhe. Afirmo-o eu, com a mesma
facilmente identificará as personagens. Tra- isto de longe), porque nesta colaboração o força que têm a vida e a morte. Pressente-
ta-se da história de um médico que, desde Oficial Artista não se arrogava o direito de -se que o Oficial Artista, na actual viagem,
há muito, escrevia notas em papéis soltos, influenciar o incipiente escritor…Ao contrá- irá estar muito ocupado para ter tempo para
mais ou menos às escondidas, que ele pró- rio encorajava o médico a escrever o livro responder a comezinhos detalhes desses.
prio considerava sem in- Acredito (não me per-
teresse para os outros e guntem porquê), que fi-
um oficial, com o dobro cará mais contente se
da sua idade, mas com cada um dos que, no fu-
provas dadas no campo turo, apreciarem a sua
das artes plásticas: no obra, eterna – espessa
desenho, na pintura, na do sabor que a maresia
escultura... arrasta – a apreciarem
Um não conhecia o de forma silenciosa e ín-
outro. Foi o acaso e a tima. Estou seguro que só
vontade de quem co- assim poderá este Oficial
nhecia os dois, que os Artista, para sempre, ser
juntou. A princípio, o contactado.
médico estava receoso. Escrevo esta pequena
Afinal eram dois desa- história após uma longa
fios: o primeiro tornar as conversa com o médico
suas histórias públicas, em questão, numa mar-
o segundo fazê-las de gem do Tejo. O Oficial
modo a que alguém sen- Artista, a esta altura, sa-
tisse inspiração para lhes bíamos ambos, já tinha
dar forma pictórica... embarcado para a sua
Com o tempo, contudo, derradeira missão. Sabía-
verificou que eram in- mos, que não ia triste, afi-
fundados os seus receios nal cumpriu, na margem
– por um lado os dese- em que nos encontramos
nhos invariavelmente re- todos, tudo aquilo que se
flectiam de forma ímpar pede a qualquer homem
o sentimento capital da e cumpriu-o com invul-
história, por outro lado, gar grandeza e arte. Fi-
como o sabem muitos, as cam sempre, contudo,
histórias eram as mais das vezes, bastante que este terá na gaveta há muito. E assim se do lado de cá, muitas coisas por dizer a
complexas e mesmo, nalguns casos, íntimas foi estreitando a relação entre os dois… respeito de quem parte, particularmente
tornando a ilustração um desafio de grande Ora foi com surpresa que soube, recen- de um homem com tantas facetas. E eu, o
dificuldade e abstracção, com maior mérito temente, por esse médico, que o Oficial Ar- médico e muitos que com ele, ao longo dos
deste Oficial Artista. tista, já não fará mais ilustrações nas suas anos, privaram sabemos que sem ele sería-
Os dois, o médico e o Oficial Artista só se histórias. Parece, que após a sua última via- mos pessoas menores. Certamente, à sua
conheceram após três histórias consecutivas gem à Índia, vai novamente partir. Sabe-se maneira, a Marinha, seria também menor
– em que o trabalho do último já havia im- que gostaria de conhecer outras pessoas, naquilo que caracteriza o âmago das pes-
pressionado o primeiro. Quando finalmente outros mundos. Quem conhece os artistas soas e também das instituições com passa-
o conheceu, o médico ficou impressiona- reconhecerá que deve ser assim mesmo – do, presente e futuro – a Alma. Terá sido,
do…Tratava-se de um homem de baixa esta- alguns espíritos nunca descansam. Têm ne- este, o maior contributo do Oficial Artista,
tura, mas bem apresentado, de olhos claros, cessidade de viajar, de conhecer e, acima a Alma Naval, que com a sua arte e o seu
bem vivos, reflexo de um espírito igualmen- de tudo mais, de sentir…Não é que deixem espírito, tanto ajudou a construir…É uma
te vivo. Nesse dia o médico percebeu, em de desenhar. Nem pensar nisso. É porque construção intemporal…
pouco tempo, que o seu ilustrador juntava nisto das artes, é preciso mudar para cres- Esperamos, por fim, eu o médico e mui-
três qualidades pouco comuns num único cer e desenhar ainda melhor. Com mais sa- tos, muitos, dos seus amigos, que encontre
ser humano: para além do dom para as ar- ber, com mais arte…Estou, portanto, seguro boa luz na viagem. É da luz que nasce a
tes plásticas, uma sensibilidade rara e uma que nesse lugar, secreto, onde ele agora se obra e a arte, enfim tudo o que precisará
profunda cultura naval, burilada por uma encontra, a sua arte vai continuar, da for- para ser feliz…
longa vida de convívio, na instituição em ma bela, luminosa e lúcida, que tão bem Z
que ambos trabalhavam. conhecemos Doc
30 ABRIL 2005 U REVISTA DA ARMADA