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HISTÓRIAS DA BOTICA (39)




                 A Viagem do Oficial e Artista
                  A Viagem do Oficial e Artista


         A                                  so. Uma das ocasiões que o médico mais  Oficial Artista não se deu conta do egoísmo
                                              Encontram-se muitas vezes depois dis-
                                                                                 Acho ainda, em jeito de lamento, que o
              história que aqui trago não se conta
              em palavras, porque essas são – es-
              tou certo – muito limitadas face aos  apreciou, assim o confessou, foi um almo-
         sentimentos que pretendemos, do fundo do  ço na Força de Fuzileiros há já algum tem-  da sua partida. É que ao contrário da maio-
                                                                               ria, vai deixar um vazio que abrange toda
         ser, transmitir. Esta é, contudo, mais uma  po…Não falavam muito das histórias pro-  a Marinha. E, claro, não adianta ligar-lhe,
         história real, em cuja trama o leitor atento  priamente ditas, acredito eu (que senti tudo  ou escrever-lhe. Afirmo-o eu, com a mesma
         facilmente identificará as personagens. Tra-  isto de longe), porque nesta colaboração o  força que têm a vida e a morte. Pressente-
         ta-se da história de um médico que, desde  Oficial Artista não se arrogava o direito de  -se que o Oficial Artista, na actual viagem,
         há muito, escrevia notas em papéis soltos,  influenciar o incipiente escritor…Ao contrá-  irá estar muito ocupado para ter tempo para
         mais ou menos às escondidas, que ele pró-  rio encorajava o médico a escrever o livro  responder a comezinhos detalhes desses.
         prio considerava sem in-                                                            Acredito (não me per-
         teresse para os outros e                                                            guntem porquê), que fi-
         um oficial, com o dobro                                                              cará mais contente se
         da sua idade, mas com                                                               cada um dos que, no fu-
         provas dadas no campo                                                               turo, apreciarem a sua
         das artes plásticas: no                                                             obra, eterna – espessa
         desenho, na pintura, na                                                             do sabor que a maresia
         escultura...                                                                        arrasta – a apreciarem
           Um não conhecia o                                                                 de forma silenciosa e ín-
         outro. Foi o acaso e a                                                              tima. Estou seguro que só
         vontade de quem co-                                                                 assim poderá este Oficial
         nhecia os dois, que os                                                              Artista, para sempre, ser
         juntou. A princípio, o                                                              contactado.
         médico estava receoso.                                                                Escrevo esta pequena
         Afinal eram dois desa-                                                              história após uma longa
         fios: o primeiro tornar as                                                           conversa com o médico
         suas histórias públicas,                                                            em questão, numa mar-
         o segundo fazê-las de                                                               gem do Tejo. O Oficial
         modo a que alguém sen-                                                              Artista, a esta altura, sa-
         tisse inspiração para lhes                                                          bíamos ambos, já tinha
         dar forma pictórica...                                                              embarcado para a sua
         Com o tempo, contudo,                                                               derradeira missão. Sabía-
         verificou que eram in-                                                              mos, que não ia triste, afi-
         fundados os seus receios                                                            nal cumpriu, na margem
         – por um lado os dese-                                                              em que nos encontramos
         nhos invariavelmente re-                                                            todos, tudo aquilo que se
         flectiam de forma ímpar                                                              pede a qualquer homem
         o sentimento capital da                                                             e cumpriu-o com invul-
         história, por outro lado,                                                           gar grandeza e arte. Fi-
         como o sabem muitos, as                                                             cam sempre, contudo,
         histórias eram as mais das vezes, bastante  que este terá na gaveta há muito. E assim se  do lado de cá, muitas coisas por dizer a
         complexas e mesmo, nalguns casos, íntimas  foi estreitando a relação entre os dois…  respeito de quem parte, particularmente
         tornando a ilustração um desafio de grande   Ora foi com surpresa que soube, recen-  de um homem com tantas facetas. E eu, o
         dificuldade e abstracção, com maior mérito  temente, por esse médico, que o Oficial Ar-  médico e muitos que com ele, ao longo dos
         deste Oficial Artista.              tista, já não fará mais ilustrações nas suas  anos, privaram sabemos que sem ele sería-
           Os dois, o médico e o Oficial Artista só se  histórias. Parece, que após a sua última via-  mos pessoas menores. Certamente, à sua
         conheceram após três histórias consecutivas  gem à Índia, vai novamente partir. Sabe-se  maneira, a Marinha, seria também menor
         – em que o trabalho do último já havia im-  que gostaria de conhecer outras pessoas,  naquilo que caracteriza o âmago das pes-
         pressionado o primeiro. Quando finalmente  outros mundos. Quem conhece os artistas  soas e também das instituições com passa-
         o conheceu, o médico ficou impressiona-  reconhecerá que deve ser assim mesmo –  do, presente e futuro – a Alma. Terá sido,
         do…Tratava-se de um homem de baixa esta-  alguns espíritos nunca descansam. Têm ne-  este, o maior contributo do Oficial Artista,
         tura, mas bem apresentado, de olhos claros,  cessidade de viajar, de conhecer e, acima  a Alma Naval, que com a sua arte e o seu
         bem vivos, reflexo de um espírito igualmen-  de tudo mais, de sentir…Não é que deixem  espírito, tanto ajudou a construir…É uma
         te vivo. Nesse dia o médico percebeu, em  de desenhar. Nem pensar nisso. É porque  construção intemporal…
         pouco tempo, que o seu ilustrador juntava  nisto das artes, é preciso mudar para cres-  Esperamos, por fim, eu o médico e mui-
         três qualidades pouco comuns num único  cer e desenhar ainda melhor. Com mais sa-  tos, muitos, dos seus amigos, que encontre
         ser humano: para além do dom para as ar-  ber, com mais arte…Estou, portanto, seguro  boa luz na viagem. É da luz que nasce a
         tes plásticas, uma sensibilidade rara e uma  que nesse lugar, secreto, onde ele agora se  obra e a arte, enfim tudo o que precisará
         profunda cultura naval, burilada por uma  encontra, a sua arte vai continuar, da for-  para ser feliz…
         longa vida de convívio, na instituição em  ma bela, luminosa e lúcida, que tão bem                    Z
         que ambos trabalhavam.             conhecemos                                                       Doc

         30  ABRIL 2005 U REVISTA DA ARMADA
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