Page 137 - Revista da Armada
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O caminho que acabamos de percorrer é Procurámos a sombra protectora dos co- até ao próximo mergulho. E assim se passou
uma autêntica pista de auto-estrada compara- queiros contra o sol impiedoso. A caixa térmi- a tarde, sem quase se dar por isso.
do com o que temos pela frente, da povoação ca com água fresca revelou-se essencial uma Com a alma cheia de tanta beleza, regres-
até à praia. Foram cerca de cinco quilómetros vez que a desidratação é elevada. sámos à praia de Tutuala ao fim da tarde. Em
de descida, que apenas viaturas todo o terre- Calçadas as barbatanas e ajustados os ócu- Timor, a noite cai por volta das 19 horas, du-
no podem galgar, já que o percurso tem de ser los de mergulho e o tubo de respiração mer- rante praticamente todo o ano. À nossa espera
efectuado com tracção integral. estava o Gonçalo, já com o peixe arranjado e
A pé, este mesmo caminho demora duas o lume aceso.
horas a percorrer, como nos afirmou um pes- Enquanto nos passávamos por água doce,
cador timorense e nos confirmou um austra- recorrendo a um chuveiro de campanha - pe-
liano sessentão que chegou lá abaixo pouco quena mordomia que a civilização já não dis-
depois de nós, de mochila às costas e bordão, pensa – o Gonçalo assa o peixe como só ele
completamente ensopado em suor. sabe. Num pequeno tacho ao lume são cozidas
E heis-nos chegados ao paraíso! as batatas que hão de ser regadas com azeite
À nossa frente, para além do estreito canal, português, há venda nas lojas de Díli.
estendem-se as areias brancas das praias do Terminada a janta e tecidos rasgados e me-
ilhéu de Jaco. Logo por de trás, a mancha verde recidos elogios ao Gonçalo, tomou-se um sa-
dos altos palmares que nos haveriam de pro- boroso café “Timor”, café de saco feito a partir
porcionar a reconfortante e protectora sombra de grão de café timorense. Depois foi tempo
que nos protegeria do sol impiedoso destas lati- de cavaqueira até chegar o “joão pestana”. A
tudes. Entre as praias de Tutuala e Jaco os diver- intervalos, ouve-se o som gutural do lagarto
sos matizes de azul, do azul turquesa ao azul to-kê, nas suas cinco notas em decrescendo,
escuro, das águas cristalinas do canal. empoleirado num qualquer ramo de uma das
Mal desembarcamos das viaturas fomos ne- arvores próximas (toké – toké – toké).
gociar o peixe, que os pescadores tinham apa- Antes de adormecer, o mesmo espectáculo
nhado nessa manhã, utilizando ainda a rudi- de miríades de estrelas, contemplado através
mentar técnica do arpão e que nos iria servir da rede mosquiteira da tenda.
de refeição ao jantar. Por dez dólares america- Momento de preia-mar. Pelas 6 horas e 15 minutos da manhã eleva-
nos arrematamos um peixe serra e três peque- -se o Sol, magnífico, por detrás do ilhéu de
nas garopas, que iriam deliciar as sete bocas gulhámos naquele imenso aquário tropical. Jaco, num cambiante de tons dourados e ru-
famintas ao fim do dia. A ajuda do Gonçalo, Passados os primeiros metros de fundo de bros. Um quarto de hora antes tinha nascido
neste pormenor, revelou-se fundamental. areia e pedra, entramos na zona de coral. É a Lua, praticamente na mesma posição, esten-
A utilização do arpão para a captura de pei- uma sensação indescritível! A água azul de dendo o seu manto prateado sobre as águas
xe, incluindo a lagosta, ainda é possível dada a uma transparência cristalina, permite-nos calmas do tassi feto. Estes momentos são me-
abundância de peixe existente nestas águas. apreciar em todo o seu esplendor as diversas lhor apreciados dentro de água, a uma tempe-
Negociado o peixe e assim garantido o jan- formas e cores das formações de coral. Cada ratura de 28 °C, superior portanto aos 24 que
tar, era tempo de escolher os melhores locais uma mais espectacular que a outra, sem sa- se encontram no exterior.
para a montagem das tendas onde iríamos pas- bermos para onde nos virarmos, mergulhados Após o pequeno almoço, a manhã é passada
sar a noite. Feito isso, enquanto o Gonçalo fi- em tanta beleza. No meio dos corais evolu- entre banhos de mar e de sol, constantemente
cava a amanhar o peixe e a guardar os nossos cionam miríades de peixes tropicais, num atraídos pelo irresistível espectáculo dos corais
pertences, negociamos com os pescadores a espectáculo maravilhoso de formas e cores. e da vida marinha à sua volta.
travessia para o ilhéu de Jaco. Cinco dólares Entretanto o Gonçalo, sem quase se dar por
por cabeça e lá fomos nós, ensanduichados ele, foi preparando o almoço e quando o apetite
nas estreitas embarcações feitas de tronco de já apertava, atacamos as costeletas e a entreme-
árvore escavado e com os dois flutuadores la- ada, levadas propositadamente de Díli. Não é
terais de cana de bambú que lhes garantem a a logística que ganha as guerras mas, sem uma
estabilidade. Hoje em dia já muitos possuem boa logística, não é possível ganhá-las.
motor fora de borda, aumentando assim a ve- Aconchegado o estômago, era tempo de ar-
locidade e raio de acção. Esta melhoria impli- rumar a tralha e regressar, não sem antes con-
cou, no entanto, a necessidade de modifica- templar mais uma vez o dourado das praias e
rem a técnica de construção naval como, por o verde dos palmares de Jaco. E não foi com
exemplo, a elevação da roda de proa e maior um adeus que nos despedimos do paraíso mas
altura das obras mortas, através da fixação de com um simples até breve.
tábuas ao longo do costado, e a introdução do Partimos pelas três horas da tarde, tracção e
painel de popa para fixação do motor. redutoras metidas, para galgarmos a estreita e
Munidos de toalha, protector solar, material curvilínea vereda, que por vezes desaparecia da
de mergulho e as hoje inseparáveis máquinas nossa vista, tal era a inclinação que apresentava.
fotográficas digitais, lá desembarcámos nas Atingido o planalto de Tutuala, foi bater estrada
maravilhosas praias de Jaco, após uma tra- até Díli, revezando-nos na condução, para que
vessia que demorou cerca de quinze minu- a concentração seja máxima. Após duas ou três
tos. Durante a viagem fomos acompanhados paragens técnicas, uma das quais para vermos
por um grande grupo de golfinhos que evo- uma lagoa de sal, de onde os timorenses reti-
lucionavam com os seus saltos graciosos à Casa típica em Los Palos. ram este produto que se forma naturalmente,
proa da embarcação. Dispúnhamos daquele che gamos a Díli cerca das dez horas da noite.
paraíso só para nós. Não se vislumbrava mais A temperatura da água do mar ronda os 28, Foram sete horas para percorrer os pouco mais
ninguém, para além da nossa presença e da 29 °C, o que nos permite manter dentro de de 250 km que nos separavam da capital.
dos pescadores que nos trouxeram (foi proi- água por longos períodos, sem necessidade Z
bido pelo governo a habitação permanente de fato de protecção. Quando finalmente se José A. Ruivo
no ilhéu por razões ecológicas). sai da água, é apenas para retemperar forças CFR FZ
REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2005 27