Page 135 - Revista da Armada
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Lapa, e que há uns anos, por seu falecimento, Marinha. Até que um dia, talvez por falta de través e a navegar em mar calmo, para per-
foram à praça com o restante espólio daquele espaço, talvez pelo gosto de partilhar, com mitir que, o armador ou o capitão do navio,
coleccionador. outras pessoas, a sua colecção, talvez para se conseguissem guardar a memória do navio
Mas não podemos ser pessimistas. Existe, assegurar do destino que iria ter o resultado que possuíram ou comandaram.
no nosso país, um apaixonado por instru- dum esforço de tantos anos, talvez por tudo Luís Ascêncio Tomasini (1823-1902) é o
mentos náuticos. Chama- nome desse pintor, que
-se Ireneu Cruz e é um foi, de profissão, capitão
distinto medico especia- de navios e nos deixou
lista em gastroenterologia, uma obra notável. A tela
Vive em Setúbal e prestou que reproduzimos, está
serviço, até há pouco tem- datada de 1887 e tem um
po, no Hospital local. interesse especial porque
Como nasce num médi- representa uma cena que
co o gosto por este tipo de não temos visto na pintu-
colecção? É o próprio que ra do século XIX.
nos esclarece: seu pai, Ze- Como é sabido, a utili-
ferino Cruz, prestou ser- zação do vapor na propul-
viço na Marinha, onde foi são dos navios, constituiu
sargento enfermeiro. To- um enorme salto tecnoló-
davia, tendo-se envolvi- gico, em relação à navega-
do no movimento militar ção à vela, porque passou
de 7 de Fevereiro de 1927, a ser possível fazer viagens
foi obrigado a abandonar cumprindo datas de larga-
a Armada. Exilou-se e aca- O Dr. Ireneu Cruz mostrando o seu Tomasini. da e de chegada, indepen-
bou por escolher Angola dentemente de haver ou
para refazer a sua vida. Saudoso do mar, isto, o nosso persistente coleccionador de- não vento e, mesmo, quando o houvesse,
teve um iate, o Dourado I, depois o Dourado cidiu legar o seu magnífico património aos nem sempre era favorável. Em Portugal ti-
II . Fez pesca desportiva, tendo sido mem- museus municipais da cidade onde vive há vemos o primeiro navio de passageiros em
bro do International Game Fish Associa- largos anos. Fê-lo, para que a sua colecção 1819 mas, na Marinha de Guerra, o vapor
tion, com sede em Nova York. Ganhou o se constituísse numa exposição permanente só entrou ao serviço em 1833.
gosto pelas viagens oceânicas. Foi às ilhas que pudesse ser apreciada, não só pelos se-
S. Tomé e Príncipe. Um dia, seu filho, que tubalenses que, assim, podiam ver com que A Casa do Corpo Santo, com os seus revestimen-
o acompanhou em algumas das suas aven- ferramentas viajaram os seus antepassados tos azulejares do primeiro terço do século XVIII -
turas, recebeu dele um sextante e um cro- marinheiros, como também por todos os onde o chão de tijoleira alterna com azulejos -- com
os seus tetos pintados e uma magnífica capela to-
nómetro. Foram estes – estou seguro -- os viandantes que passem por essa bela cida-
talmente forrada a talha dourada, onde sobressaem
detonadores que despertaram em Ireneu a de sobre o Sado. A Câmara Municipal não bustos-relicários incrustados nas paredes.
paixão pelos objectos de Marinha, dando só recebeu a colecção com entusiasmo, como Esta Casa, anexada ao palácio da Família Cabe-
origem a uma colecção que a pouco e pou- escolheu, para lhe dar guarida, a bela Casa do, foi construída em 1714 e serviu de instalação à
co, foi crescendo à custa de peças adquiri- do Corpo Santo, construída em 1714, e que importante e abastada Confraria de pescadores na-
vegantes e armadores de Setúbal. Existente, desde o
das em Portugal e no estrangeiro. ficaria ligada à história marítima de Setúbal.
século XIV (com compromisso de 1340), ficou ligada
Conheci esta colecção enquanto crescia e ia Veja-se a caixa junta. à confraria do Corpo Santo, nome pelo qual era co-
invadindo a residência deste nosso apaixo- O visitante pode deliciar-se contem- nhecido Santelmo ou S. Pedro Gonçalves, orago da
nado coleccionador. Já não havia lugar para plando 137 peças, entre as quais, uma bi- Confraria e santo protector dos náufragos.
Com o desaparecimento desta Confraria, o edi-
mais instrumentos e outros apetrechos de tácula, várias agulhas de marear, aparelhos
fício alojou vários organismos, ao longo da sua
de marcar, oitantes, história mais recente, entre os quais duas outras
sextantes, óculos tão associações marítimas, ambas da segunda me-
usados, no século tade do século XIX: A Sociedade Setubalense de
XIX, pelo oficial de Pescaria Franciscana e o Monte Pio da Corpora-
ção Marítima da Casa do Corpo Santo (pescado-
quarto, um teodolito, res de anzol).(1)
um cronómetro de
bordo, barómetros,
réguas de paralelas Pois bem, a preciosa tela que reprodu-
e outros instrumen- zimos mostra um veleiro a ser rebocado,
tos. Um catálogo bem operação que foi uma das mais proveitosas
apresentado ajuda o actividades dos navios com propulsão a va-
visitante na identifi- por. Apesar de, no ano de 1849, se ter prova-
cação das peças. do, numa luta de tracção, entre dois navios
Irineu Cruz possui iguais e com a mesma potência das máqui-
ainda uma bela tela nas, um dispondo de rodas outro de hélice,
pintada por um fa- que a vantagem era claramente deste último,
moso retratista de na- as rodas laterais ainda sobreviveram largos
vios, um género que anos, como se pode constatar nesta pintura
teve grande êxito no de Tomasini que data de 1887.
século XIX, quando a Z
fotografia ainda dava A. Estácio dos Reis
CMG
os seus primeiros pas- (Fotos de Júlio Tito)
sos. Nesse tempo en- Notas
Rebocador de vapor com o brigue entrando no Tejo – 1887. comendava-se o retra- (1) Elementos fornecidos pelos Serviços Culturais
Luís Ascênsio Tomasini. to do navio, visto pelo da Câmara Municipal de Setúbal.
REVISTA DA ARMADA U ABRIL 2005 25