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HISTÓRIAS DA BOTICA (40)
O Cirurgião e a amizade
O Cirurgião e a amizade
A especial, a forma de estar do Cirurgião. Esta com o tempo e o desgaste lento da vida,
amizade escreve-se de múltiplas for-
mas. Pode ser o apoio nos dias de era muito própria, muitas vezes cheia de desconfie muito mais de quem só no escuro
vendaval. Pode ser a palavra que nos palavras duras, coloridas com um calão ex-
de corredores sombrios expressa a sua opi-
mitiga o medo e a solidão. É, acredito eu, pressivo, ditas frequentemente de forma que nião, do que daqueles que dizem, mesmo
ainda mais a certeza do que está lá, quan- alguns considerariam fora de contexto, ou de forma agressiva, o que pensam…
do tudo o resto parece ruir. A verdadeira mesmo agressivas. - É assim este Cirurgião, Contudo, por motivos que em toda a sua
amizade é suave e perdoa. Já foi descrita particularmente, quando se achava do lado extensão eu desconheço e que o Candida-
em palavras sim- to, por reserva,
ples, e em poe- não explicou, a
sias elaboradas. carreira deste Ci-
Já foi descrita em rurgião sofreu, há
livros famosos, já alguns anos,
cheios de peso uma reviravolta,
moral – como que – pude per-
na Bíblia – e na ceber – este sen-
mais banal lite- te como muito
ratura de cordel, negativa. Achou-
por poetas do -se injustiçado e
povo, desses que acabou, recente-
valorizam mais a mente, a sua car-
rima que o con- reira naval, numa
teúdo. Ora eu, instituição militar
que certamente fora do Hospital
me situo mais – onde perma-
perto destes últi- neceu o médico
mos poetas, de- dedicado, que
cidi, hoje e aqui, sempre se lhe re-
abordar também conheceu. Man-
este tema, por- teve também a
que também en- sua actividade
contrei uma ami- cirúrgica, noutro
zade que valia a hospital militar,
pena contar… onde também
Trata-se da terá recebido, pú-
amizade entre blico louvor da
um médico mais sua actividade.
novo e um mais Ora o Candi-
antigo. Conhece- dato pensa mui-
ram-se no Júri do to nele, neste
exame de admis- seu amigo Ci-
são para o qua- rurgião, talvez
dro de médicos mais do que ele
navais. No Júri estava o Cirurgião. Pareceu da razão, afirmou-me o Candidato. Outras próprio imagina. Pensou nele quando ele
então, ao Candidato (assim vou chamar ao vezes eram piadas e anedotas, que fariam próprio sentiu a solidão da diferença. Pen-
mais novo dos intervenientes desta história, corar um sargento de cavalaria, cheias de sou nele na amizade, respeito e apoio que
por simplicidade, descrição e porque nestes um vernáculo que muitos considerariam lhe dedicou ao longo de anos. Acredita o
termos me relatou a história), como um ho- inconveniente. Tudo isto, claro, está sujeito Candidato, que também se deve ter sen-
mem austero algo distante. Voltaram a ver-se à subjectividade que é própria e de direito tido só ao longo de todo este processo e
logo após o embarque, quando, em Serviço para cada um de nós, mas – afirma o Can- julga perceber algum do sofrimento com
no Hospital da Marinha, houve dificuldade didato – nunca constou que no reboliço da que sente a vida, a perplexidade que cer-
em tratar uma hemorragia digestiva e ele, di- tempestade, que é a vida, tenha descurado tamente o tem acompanhado e a vontade
ligentemente, ajudou o jovem médico sem os seus deveres como médico. de que tudo se tivesse desenrolado de um
aquele ar “professoral” de quem dá lições De certa forma parece que, a seu modo, o outro modo. O Cirurgião, acrescentou o
do alto da sua cátedra, mas antes conselhos Cirurgião dava uma imagem típica do Hos- Candidato, no pior e no melhor, sempre
práticos de uma vida cheia de eventos seme- pital da Marinha, naquilo que este tem de lhe terá mostrado a sua face mais dócil,
lhantes…um saber de experiência feito. pitoresco e melhor (diferente, nas relações talvez a menos conhecida da maioria. No
Ao longo dos anos, o Candidato foi co- interpessoais, da maior parte dos muitos equilíbrio, sempre instável entre o que
nhecendo melhor o Cirurgião, na sua forma hospitais que conheço): a camaradagem, a nos devem e o que temos a haver, acha o
de ser e estar. Apercebeu-se do seu interesse dedicação e, particularmente a picardia que Candidato, que lhe deve muito. Deve-lhe
pelos doentes e do carinho com que muitos é própria da Marinha. Na realidade, talvez o a confiança e a amizade, com que o brin-
destes o tratavam. Tentou compreender, em Candidato, como eu e como muitos outros, dou todos estes anos.
30 JUNHO 2005 U REVISTA DA ARMADA